A interoperabilidade e a portabilidade no mercado de vales benefícios – Economy & Law
- Na Mídia
- 28/08/2025
- Tendências

O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) tem como objetivo assegurar que os trabalhadores tenham acesso a uma alimentação equilibrada e de qualidade, incentivando a destinação de recursos exclusivos para essa finalidade. Esse incentivo à concessão de benefícios de refeição e alimentação tem grande importância na vida profissional dos trabalhadores brasileiros
Por Fabiana Tito, Gabriel Madeira, Priscila Kneipp Barbuy Wilhelm e Laura Segurado Frare – Tendências Consultoria
Atualmente, o programa abrange mais de 24 milhões de trabalhadores em mais de 470 mil empresas, contando com mais de um milhão de estabelecimentos comerciais credenciados. O valor médio do benefício refeição é de R$ 494,83, o que corresponde a aproximadamente 32% do salário-mínimo. Portanto, o programa desempenha papel relevante no fortalecimento da política de alimentação do trabalhador, ao assegurar a aquisição de alimentos e a manutenção da boa nutrição dos trabalhadores.
Além de sua importância direta para o trabalhador, o mercado de benefícios alimentares no Brasil representa um segmento consolidado da economia nacional, movimentando valores expressivos que refletem sua integração com diversos setores produtivos. O montante movimentado por vales refeição e alimentação posiciona o segmento como um componente relevante do PIB brasileiro, representando aproximadamente entre 1,3% e 1,7% da atividade econômica nacional.
Adicionalmente, o programa tem grande importância para o setor de bares e restaurantes, que movimenta aproximadamente R$ 455 bilhões anuais segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Os vales-refeição constituem uma fonte importante de receita para estabelecimentos comerciais, desde grandes redes de fast-food até pequenos restaurantes locais, contribuindo com o desenvolvimento do mercado de serviços alimentares. Esta dinâmica fortalece a cadeia produtiva do food service e contribui para a geração de empregos em um setor tradicionalmente intensivo em mão de obra.
Paralelamente, o vale-alimentação impacta significativamente outro setor intensivo em mão de obra, o de varejo de alimentos, especialmente supermercados e hipermercados, que registraram faturamento de R$ 1,067 trilhão em 2024 conforme dados da Associação Brasileira de Supermercados.
Recentemente, o programa tem sido objeto de reformas e propostas de mudanças. Alterações são bem-vindas quando modernizam e propiciam maior eficiência ao setor. Entretanto, quando trazem incertezas e são adotadas sem a devida análise do seu impacto, de maneira descuidada e com ameaças à continuidade do PAT e à viabilidade de empresas do setor, comprometendo a qualidade dos serviços prestados pelas facilitadoras, emergem questionamentos e preocupações. Para a compreensão das mudanças propostas e dos receios em relação a algumas delas, é importante, inicialmente, esclarecer o propósito do programa e o modelo adotado para sua implementação.
O PAT foi criado em 1976 pela Lei 6.321, e tem como objetivo estimular melhores condições de alimentação para os trabalhadores de baixa renda. Como mecanismo de incentivo para as empresas aderirem ao PAT, foi estabelecido um benefício fiscal às participantes, dedutível do lucro tributável quando aplicável, bem como a não incidência de encargos trabalhistas e previdenciários, aplicada mesmo quando a empresa não se beneficia do incentivo fiscal, sobre os recursos destinados ao PAT.
O mercado de atuação dessas facilitadoras configura-se como o que a literatura econômica usualmente denomina mercado de múltiplos lados, caracterizado pela interdependência entre os participantes. Nessa estrutura, múltiplos grupos de usuários são conectados pelos prestadores de serviço. No caso em questão, as facilitadoras, prestadoras do serviço, firmam contratos com os setores de RH das empresas, as quais concedem os recursos que serão convertidos em créditos para a utilização nos estabelecimentos comerciais. A partir disso, as facilitadoras intermediam e viabilizam transações entre os beneficiários (trabalhadores dessas empresas) e os estabelecimentos comerciais com os quais também mantêm relações contratuais. Nessa dinâmica, o valor do serviço para um grupo aumenta proporcionalmente à participação do outro
As empresas empregadoras são procuradas por facilitadoras credenciadas ao PAT para fornecer benefícios aos funcionários. Essas facilitadoras assumem responsabilidades operacionais que incluem o credenciamento e o monitoramento de estabelecimentos comerciais, a disponibilização de tecnologia para o processamento das transações, a conversão dos recursos em vales alimentação e refeição, além da emissão, distribuição e controle da utilização correta dos recursos dos vales alimentação e refeição aos beneficiários.
Os beneficiários, por sua vez, devem utilizar os saldos recebidos exclusivamente para a aquisição de produtos e serviços alimentícios em estabelecimentos comerciais credenciados, que são reembolsados pelas facilitadoras conforme contratos estabelecidos entre as partes. Sobre tais reembolsos, incide o pagamento das tarifas de serviço.
Essa configuração posiciona as empresas empregadoras, os trabalhadores e os estabelecimentos comerciais como usuários das facilitadoras, que atuam como prestadoras de serviços nas transações do mercado de vales alimentação e refeição. Como a remuneração das facilitadoras ocorre por meio de taxas e tarifas de serviços pagas pelos estabelecimentos comerciais, estes são os agentes que atuam como principais financiadores desse mercado.
O processo de credenciamento é realizado entre cada facilitadora e cada estabelecimento comercial, mediante a verificação dos pré-requisitos do PAT e acertos técnicos com as adquirentes para a aceitação dos cartões. Os estabelecimentos comerciais credenciados são monitorados continuamente e verificados de forma amostral anualmente para garantir a conformidade com o PAT.
Há a necessidade de coleta e o armazenamento de documentos comprobatórios, como o registro do estabelecimento comercial com o código de atividade econômica passível de credenciamento, constante da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), cardápios para fins de verificação do valor nutricional, certificados de vigilância sanitária, entre outros, como os que corroboram o funcionamento da pessoa jurídica no setor de alimentação. Além disso, são realizadas verificações no estabelecimento comercial, de forma direta, para atestar as condições operacionais dos estabelecimentos. Isso resulta em um descredenciamento anual médio de 3.500 estabelecimentos.
Isso ocorre porque o PAT requer que seus recursos de fato sejam empregados na alimentação dos trabalhadores. Assim, impõe requisitos que limitam a escala da rede de estabelecimentos credenciados e impõe maiores custos para o monitoramento e a manutenção do sistema. Como se trata de um benefício direcionado, a concessão do PAT por meio de vales também fomenta o mercado alimentício.
O processo de credenciamento do estabelecimento comercial pela facilitadora exige a verificação de pré-requisitos do PAT, a negociação entre as partes e, posteriormente, procedimentos técnicos tratados com as adquirentes para a aceitação daquele vale pelas máquinas de cartão disponíveis no estabelecimento comercial. A cada nova facilitadora que o estabelecimento decide aceitar, todo o procedimento de credenciamento é repetido.
A concorrência nesse mercado é muito influenciada pelo tamanho e pela diversidade da rede credenciada de cada facilitadora. Aquelas que possuem maior cobertura oferecem mais conveniência e liberdade de escolha aos colaboradores das empresas contratantes, tendendo, portanto, a serem mais escolhidas.
Importante frisar que as especificidades do PAT criam um contexto operacional fundamentalmente diferente para as facilitadoras de vales alimentação e refeição quando comparadas às operadoras de cartões de crédito convencionais.
O PAT impõe que os recursos sejam usados para um propósito específico – a alimentação dos trabalhadores – o que limita a escala da rede de estabelecimentos credenciados. Enquanto os cartões de crédito buscam maximizar sua aceitação em qualquer estabelecimento comercial, as facilitadoras de benefícios de alimentação e refeição precisam garantir que os estabelecimentos credenciados atendam fundamentalmente à finalidade alimentar e detenham higidez sanitária, em obediência aos critérios específicos mencionados.
Reformas do PAT
Nos últimos anos, o PAT tem sido objeto de reformas e propostas de mudanças com o objetivo de modernizar sua estrutura. Participantes do setor têm acompanhado as propostas de reformulação e participado de discussões com os órgãos regulatórios para assegurar que elas de fato contribuem para a operação do PAT e são consistentes com os princípios que orientaram sua criação: promover e monitorar a saúde e aprimorar a segurança alimentar e nutricional de seus trabalhadores por meio do incentivo à alimentação adequada e saudável.
Entre as principais mudanças implementadas, destaca-se a proibição expressa do saque em dinheiro dos valores vinculados ao programa, conforme determinado pelo Artigo 174 do Decreto nº 10.854/2021. Essa proibição surgiu como resposta a propostas que sugeriam substituir os cartões de vale-refeição e vale-alimentação por formas de pagamento em espécie, consideradas inapropriadas e de difícil controle. O saque em dinheiro comprometeria diretamente a finalidade do PAT, pois possibilitaria o uso dos recursos para fins alheios à alimentação, ferindo o propósito original do programa.
Os valores destinados ao PAT são isentos de tributos e encargos trabalhistas e previdenciários, justamente por terem uma destinação específica: garantir alimentação adequada aos trabalhadores, sem integrar sua renda disponível para outros fins. Se os valores são pagos diretamente em conta corrente ou em espécie, tornam-se indistinguíveis do salário e transformam-se em verba remuneratória. Isso cria um incentivo para que empresas substituam aumentos reais de salário por incrementos no valor dos benefícios, usufruindo das isenções sem a contrapartida de garantir a destinação dos recursos à alimentação. Isso geraria uma renúncia de recursos públicos, com diminuição na arrecadação tributária, previdenciária e trabalhista sem qualquer contrapartida.
Além dos impactos fiscais, essa flexibilização pode prejudicar o setor de alimentação, especialmente bares, restaurantes, padarias e lanchonetes que se beneficiam do uso direcionado dos vales alimentação e refeição no âmbito do PAT. Como os estabelecimentos comerciais estão próximos aos locais de trabalho, com o objetivo de vender alimentos aos trabalhadores da circunvizinhança, a possibilidade de uso dos recursos para outros fins, inclusive para bens não alimentares como bebidas alcoólicas, cigarros e apostas, pode reduzir a demanda por alimentos nesses estabelecimentos, colocando em risco sua viabilidade econômica. Também há impactos potenciais para as famílias dos trabalhadores, que frequentemente utilizam o vale alimentação para aquisição de alimentos “in natura” e preparados para o consumo domiciliar. Ao permitir o uso indiscriminado dos recursos para produtos não alimentícios, compromete-se a promoção da alimentação saudável, objetivo central do PAT.
Para evitar essas distorções e proteger a integridade do programa, é fundamental que os benefícios sejam fornecidos por meio de veículos que assegurem sua destinação exclusiva à alimentação, como os vales alimentação e refeição, com controle de uso. As empresas emissoras de benefícios desempenham papel essencial nesse arranjo, garantindo que os recursos sejam efetivamente utilizados para a compra de alimentos. Qualquer proposta que permita o uso dos valores em dinheiro ou em formas de difícil rastreamento tende a violar o propósito original do PAT e a comprometer a arrecadação tributária e previdenciária do país.
A nova lei também introduziu mecanismos de interoperabilidade e portabilidade. A interoperabilidade obriga que as empresas operadoras de benefícios alimentares organizadas em arranjos de pagamento fechado permitam o compartilhamento de suas redes credenciadas com arranjos abertos, ampliando a rede de aceitação dos benefícios. A portabilidade gratuita, por sua vez, confere ao trabalhador o direito de transferir seu benefício para outra operadora, mediante solicitação expressa. Essas medidas – interoperabilidade e portabilidade – tem o potencial de impactar substancialmente o setor, conforme este artigo trata a seguir.
Além disso, a referida Lei e o Decreto Federal nº 11.678/2023 reforçaram a vedação de práticas comerciais que possam desvirtuar o caráter nutricional do PAT. O Artigo 175 proíbe a exigência ou recebimento de qualquer deságio, desconto, prazos de repasse inadequados ou outros benefícios que não estejam diretamente vinculados à promoção da saúde e segurança alimentar. O decreto também veda expressamente programas de recompensa, como o “cashback”, em que parte dos valores gastos retorna ao consumidor ou à empresa contratante. Essas práticas, juntamente com os chamados “rebates” – incentivos oferecidos pelas emissoras para atrair clientes – foram proibidas por desvirtuarem os objetivos do programa e elevarem os custos para os estabelecimentos comerciais.
A Interoperabilidade no sistema PAT
A interoperabilidade, conceito fundamental em diversos setores digitais, refere-se à capacidade técnica de diferentes dispositivos, sistemas ou plataformas se comunicarem entre si, independentemente de quem os fabrica ou opera. Essa capacidade baseia-se em padrões técnicos comuns que funcionam como uma linguagem compartilhada. Esse princípio aplicado ao mercado de benefícios do PAT tem o objetivo de romper barreiras técnicas entre diferentes sistemas de pagamento e ampliar a concorrência, permitindo que novas empresas ingressem no mercado com maior facilidade.
No mercado de arranjos de pagamento do PAT, ainda que exista a possibilidade técnica de uma máquina de cartão aceitar vales de diferentes facilitadoras, é necessário um procedimento específico de autorização entre o estabelecimento comercial, cada facilitadora e cada adquirente. Para resolver esse gargalo e ampliar a competitividade, a Lei nº 14.442/2022 determinou que os arranjos de pagamento do PAT deveriam implementar a interoperabilidade entre si, permitindo o compartilhamento da rede credenciada de estabelecimentos comerciais. Essa medida objetiva facilitar o processo de credenciamento e simplificar o uso dos benefícios por trabalhadores e empresas.
Para implementá-la, a Associação Brasileira de Empresas de Benefícios (ABBT) propõe a criação da chamada Rede PAT. Essa rede deve ser um ambiente de multicredenciamento interoperável, englobando todas as facilitadoras – operando em arranjos fechados ou abertos –, todos os estabelecimentos comerciais credenciados e todas as adquirentes de pagamento. A principal mudança promovida por essa rede será a simplificação dos processos técnicos que hoje dificultam que um estabelecimento aceite diferentes cartões de benefícios. A infraestrutura interoperável permitirá que, ao se credenciar com uma facilitadora, o estabelecimento passe automaticamente a ter a possibilidade de aceitar os cartões de outras facilitadoras, desde que cumpra os requisitos do PAT. A decisão final sobre quais facilitadoras aceitar continuará sendo do estabelecimento, mas o acesso às opções será muito mais fácil e menos custoso.
Esse novo arranjo traz impactos diretos na dinâmica de mercado. Atualmente, há mais de 500 facilitadoras autorizadas a operar no Brasil, mas a maioria dos estabelecimentos comerciais lida apenas com um número reduzido dessas empresas, devido aos custos e às complexidades envolvidas na negociação e credenciamento com cada uma. Com a Rede PAT, todos estarão em um mesmo ambiente (ecossistema) e os estabelecimentos poderão comparar de forma transparente as condições oferecidas pelas diferentes facilitadoras, escolhendo aquelas que lhes forem mais vantajosas. Espera-se, com isso, um estímulo à concorrência, a redução de taxas e tarifas, o que tenderia a reduzir preços ao consumidor final.
A mudança é especialmente relevante para os pequenos estabelecimentos comerciais, que enfrentam custos fixos proporcionais mais altos para acessar a tecnologia de aceitação dos benefícios. A interoperabilidade permitirá diluir esses custos, facilitando a ampliação da rede de aceitação e, ao mesmo tempo, beneficiando os próprios trabalhadores que terão mais opções para usar seus benefícios. Com isso, o sistema se torna mais inclusivo e eficiente.
Do ponto de vista econômico, a interoperabilidade representa uma mudança estrutural que beneficia os financiadores do sistema – os estabelecimentos comerciais – ao aumentar seu poder de barganha. Os contratos atuais entre estabelecimentos e facilitadoras não precisarão ser obrigatoriamente alterados, o que reduz o risco de insegurança jurídica, e os custos de operação tendem a cair com a unificação de processos e padronização de regras. A simplificação também favorece novos entrantes no mercado de facilitadoras, especialmente aquelas de pequeno e médio porte que operam regionalmente, criando um ambiente mais competitivo e equilibrado.
Para garantir que a Rede PAT funcione adequadamente, será necessário estabelecer um modelo de gestão com princípios claros de governança, envolvendo tanto o setor público quanto o setor privado. Segundo a ABBT, a governança da Rede PAT deve assegurar, além do cumprimento dos padrões técnicos de interoperabilidade, a aderência às regras legais do PAT. O monitoramento e a fiscalização dos estabelecimentos credenciados – hoje responsabilidade das facilitadoras – também deverão ser mantidos, com a Rede PAT servindo como instrumento para garantir a conformidade com os critérios do programa. Relatórios de gestão e monitoramento poderão ser compartilhados com órgãos públicos responsáveis pelo PAT, como o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério da Saúde.
Segundo a ABBT, a governança da Rede PAT poderia contar com estruturas que detivessem competências deliberativas e de gestão, com a participação do setor público e privado, inclusive com autorregulação. O órgão máximo de governança do PAT, responsável pela regulamentação, poderia ser composto por representantes do Governo Federal, da classe trabalhadora, dos estabelecimentos comerciais, das associações de facilitadores e das empresas empregadoras. A ABBT afirma que, para fins de operacionalização, poderia ser criado um comitê gestor da Rede PAT, que seria responsável pela autorregulação e estabeleceria as regras e os procedimentos operacionais para o funcionamento da interoperabilidade (convenções), com níveis de governança similares àqueles exigidos no mercado financeiro. A sua composição seria de representantes das associações de facilitadoras.
É importante destacar que os arranjos do PAT diferem dos meios de pagamento tradicionais, como cartões de crédito ou débito. Enquanto esses últimos estão integrados ao sistema financeiro e sujeitos à regulação do Banco Central do Brasil (BC), com exigências de requisitos prudenciais, controle de riscos e exposição a ativos financeiros, os vales do PAT tipicamente envolvem valores pré-pagos, restritos à aquisição de produtos alimentícios e utilizados apenas em estabelecimentos credenciados. Esses recursos não geram riscos sistêmicos e não têm impacto direto na estabilidade do Sistema Financeiro Nacional. Por isso, tratá-los como instrumentos financeiros e submetê-los ao mesmo nível de regulação pode ser ineficiente e até contraproducente, podendo resultar em desestímulo à política pública que o PAT visa concretizar.
Os arranjos PAT exigem uma supervisão específica, voltada à fiscalização do uso correto dos benefícios e da adequação dos estabelecimentos comerciais às normas do programa. Essa tarefa exige expertise setorial e conhecimento das particularidades do mercado de alimentação. A supervisão efetuada pelo BC, voltada a riscos de crédito, mercado e liquidez, não se aplica com a mesma eficácia a esse setor. Assim, propõe-se que a gestão da Rede PAT fique sob responsabilidade de uma entidade dedicada, com profundo conhecimento das normas do PAT e das exigências práticas para sua operacionalização.
Em síntese, a implementação da interoperabilidade por meio da Rede PAT representaria uma modernização significativa do sistema de benefícios alimentares no Brasil. Essa medida tem potencial para ampliar a concorrência, reduzir custos, beneficiar pequenos negócios, dar mais opções aos trabalhadores e preservar o foco nutricional do programa. Ao mesmo tempo, exige um modelo de governança específico, com foco setorial, capaz de garantir eficiência técnica, conformidade legal e sustentabilidade econômica do PAT.
A Portabilidade no sistema PAT e seus riscos
A Lei nº 14.442/2022 introduziu a possibilidade de portabilidade no PAT prevendo que os trabalhadores possam transferir, de forma gratuita, os valores disponíveis em suas contas de pagamento de benefícios (como cartões de alimentação e refeição) para contas equivalentes em outras facilitadoras. Essa medida parte do princípio de aumentar a autonomia dos trabalhadores e estimular uma concorrência mais direta entre as empresas prestadoras do serviço. A ideia é que, ao permitir a escolha da facilitadora por parte do beneficiário, e não apenas pelo empregador, o trabalhador poderia buscar melhores condições de uso e atendimento.
Contudo, ao se analisar as especificidades e o funcionamento do mercado de benefícios do PAT, observa-se que a introdução da portabilidade apresenta múltiplos riscos. Uma vez implementada de forma eficiente a interoperabilidade, a razoabilidade de uma medida adicional para alterar a dinâmica do mercado torna-se questionável, especialmente se essa medida gera riscos relevantes, como é o caso da portabilidade.
Embora apresentada como estímulo à competição, a portabilidade tende a produzir uma disputa que conduz a estratégias que desviam do objetivo principal do PAT, e que não trazem os benefícios tipicamente associados à concorrência. Mesmo com a vedação legal de práticas como cashback e rebates, facilitadoras poderiam ser levadas a conceder vantagens indiretas para atrair beneficiários, como brindes, bônus ou promoções. Essas ações, ainda que atrativas à primeira vista, criam um ambiente de disputa que tende a elevar os custos operacionais do sistema, sem necessariamente gerar ganhos de eficiência. Trata-se de uma situação recorrente na literatura econômica, em que a busca do interesse próprio por agentes econômicos produz um prejuízo coletivo.
Mesmo que as empresas fossem muito similares, sem qualquer empresa dominante, a disputa estimulada pela portabilidade tenderia a produzir efeitos adversos. Nesse caso, a portabilidade ofereceria a todas as empresas de vales alimentação e refeição incentivos para fazer gastos para atrair portadores de benefícios. Como esses incentivos se apresentariam a todas as empresas, no final, todas elas fariam esses gastos e, portanto, teriam custos mais elevados.
No entanto, as empresas não extrairiam benefícios como contrapartida a esses custos, pois não há razão para supor que cada uma delas aumentaria sua participação de mercado, uma vez que todas essas empresas despenderiam recursos nessa disputa. Ao final, seria de se esperar que esses custos adicionais, não relacionados ao propósito do PAT, fossem repassados aos estabelecimentos comerciais, que são os agentes que de fato pagam as tarifas que financiam o sistema. Assim, a portabilidade estimula uma disputa que tende a aumentar tarifas em vez de diminuí-las.
Essa dinâmica difere da de outros mercados em que a portabilidade de fato produziu impactos positivos sobre a competição, como os de telefonia celular e crédito bancário. A diferença fundamental é que nesses mercados, o agente que pode optar pela portabilidade é quem de fato paga as tarifas pelo serviço. No setor de vales benefícios, a ponta que pratica a portabilidade (os beneficiários), não é a que paga as tarifas do sistema (a dos estabelecimentos comerciais). Assim, é a interoperabilidade, e não a portabilidade, que induz competição na ponta do sistema que de fato se encarrega de financiá-lo por meio de taxas e tarifas, a dos estabelecimentos comerciais.
Essa disputa induzida pela portabilidade tende a ser ainda mais nociva em casos assimétricos, em que há disparidades relevantes entre empresas. Ela tende a ser particularmente prejudicial às pequenas e médias facilitadoras, que têm menos capacidade financeira para competir oferecendo vantagens paralelas. Isso pode favorecer a concentração do mercado nas mãos de grandes empresas, muitas vezes integrantes de conglomerados com presença em setores correlatos, como varejo e delivery.
Grandes empresas podem usar estruturas consolidadas e receitas de outras áreas para atrair rapidamente usuários do PAT, comprometendo a diversidade de atores e modelos de negócios no setor. Note-se que a maioria das mais de 500 facilitadoras autorizadas são de pequeno porte com atuação localizada em regiões específicas. Essas empresas estariam ameaçadas em um contexto em que a portabilidade poderia produzir uma rápida captura de seus beneficiários.
A portabilidade também apresenta obstáculos operacionais. A movimentação frequente de beneficiários entre facilitadoras fragmenta as informações sobre uso dos benefícios, dificultando o monitoramento e o controle de sua destinação. Como o PAT tem o objetivo de garantir alimentação adequada, é essencial que os valores sejam utilizados exclusivamente em estabelecimentos que vendam produtos alimentícios. A multiplicação de sistemas e a falta de padronização tornam mais difícil verificar se as regras estão sendo cumpridas, o que pode comprometer o propósito social do programa.
Além disso, a medida impõe maior complexidade administrativa às áreas de recursos humanos das empresas, que terão de lidar com atualizações constantes de cadastros sempre que houver troca de facilitadora pelos empregados. Considerando que o PAT atende milhões de trabalhadores, mesmo um número pequeno de trocas geraria um volume considerável de retrabalho, com impacto em tempo e custos administrativos.
A insegurança jurídica também é um risco relevante. Caso um trabalhador transfira seu benefício para uma facilitadora com a qual sua empresa não tem contrato, pode haver questionamentos sobre a responsabilidade em caso de falhas na prestação do serviço. Isso pode expor os empregadores a litígios e comprometer a previsibilidade nas relações contratuais, hoje firmadas diretamente entre empresas e facilitadoras.
Outro problema potencial é o comportamento de free riding entre as empresas do setor. Uma facilitadora pode realizar todo o esforço comercial para convencer uma empresa a aderir ao PAT e, após a contratação, outra facilitadora pode atrair os trabalhadores diretamente, sem ter participado das negociações iniciais. Isso desestimula a concorrência saudável, especialmente para as empresas menores, que perdem incentivos para atuar no mercado.
Em suma, importantes ganhos de concorrência no setor de facilitadoras do PAT devem se materializar com a implementação da interoperabilidade, medida que, conforme discutido anteriormente, incentiva a entrada de novas facilitadoras ao simplificar o acesso aos estabelecimentos credenciados, simplifica a expansão das pequenas e médias facilitadoras existentes e, ao mesmo tempo, preserva os contratos existentes, reduzindo riscos jurídicos. Esses efeitos, por si só, promovem um ambiente mais competitivo e eficiente e minimizam a necessidade de intervenções adicionais, como a portabilidade.
Por outro lado, a aplicação da portabilidade, mesmo que de fato trouxesse alguma conveniência para os beneficiários, produziria riscos muito relevantes se adotada de maneira irrestrita e descuidada no sistema PAT. Havendo a implementação de um modelo de interoperabilidade, que altera a dinâmica de competição do setor, é razoável que haja um acompanhamento de seus impactos sobre o mercado, a fim de atestar sua eficiência e efeitos sobre a qualidade de atendimento aos consumidores. Seria procedente somente em um momento posterior verificar e avaliar a necessidade de medidas adicionais, como a portabilidade.
Caso se opte por implementar alguma medida adicional à interoperabilidade, é importante que isso seja feito com cautela, avaliando sua real necessidade, os custos e benefícios envolvidos, e prestando atenção aos receios expressos pelos participantes do sistema. Intervenções precipitadas e descuidadas trariam ameaças reais ao setor e ao PAT.
Conclusão
A análise realizada sobre as reformas no mercado de benefícios no âmbito do PAT, incluindo a interoperabilidade e a portabilidade, evidencia a necessidade de um desenho regulatório que garanta os objetivos do sistema, bem como sua eficiência e estabilidade.
É importante que as regras do PAT garantam que seus recursos sejam utilizados de acordo com as diretrizes do programa, visando à alimentação do trabalhador. Inovações que ignorem esse propósito, como a mera distribuição de recursos em espécie, produzem um desvirtuamento do programa.
A interoperabilidade, ao estabelecer padrões técnicos que viabilizam a integração entre facilitadoras e estabelecimentos comerciais, por meio da Rede PAT, apresenta-se como um mecanismo relevante para promover maior eficiência operacional. Tal medida tende a simplificar os processos de credenciamento, reduzir custos transacionais para os estabelecimentos comerciais e intensificar a concorrência no segmento, maximizando efeitos positivos sobre os preços e serviços ofertados.
Por sua vez, a portabilidade, que supostamente ampliaria a autonomia dos beneficiários, apresenta riscos técnicos e econômicos muito relevantes. A análise econômica indica que sua adoção, especialmente se irrestrita, pode gerar impactos indesejáveis de primeira ordem, como o aumento de custos operacionais, indução a práticas não alinhadas à finalidade do programa e riscos concorrenciais. Além disso, há implicações jurídicas e administrativas que podem comprometer a eficiência e a estabilidade contratual entre empregadores, facilitadoras e beneficiários.
Assim, conclui-se que a prioridade deve ser a implementação eficaz da interoperabilidade, que oferece ganhos concretos de eficiência e competitividade, com menor risco de desestabilização do mercado. Medidas adicionais devem ser avaliadas com cautela, após um acompanhamento dos seus desdobramentos.
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