Tendências Consultoria Econômica

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Preço zero e concorrência em plataformas digitais – Jota

Movimentos da 99 e da Meituan expõem barreiras à entrada e reforçam desafios da atuação antitruste em mercados digitais

Por Adriana Hernandez Perez* e Fabiana Tito**

Em abril de 2025, o grupo 99, conhecido por seu aplicativo de corridas de carro ou táxi, anunciou o investimento de R$ 1 bilhão no mercado nacional de entregas de refeições, com a expectativa de suprir a demanda não atendida pelos atuais players. No mês seguinte, foi a vez da Meituan, gigante chinesa de entregas, que anunciou sua entrada no mercado nacional com investimentos de R$ 5,6 bilhões. 

Tais movimentos, no entanto, motivam preocupações quanto à contestabilidade das plataformas já estabelecidas.

Plataformas bem-sucedidas tendem a ser grandes, devido às importantes economias de escala e escopo, bem como aos efeitos de rede gerados aos usuários. Poucas sobrevivem às expectativas (autorrealizáveis) do mercado tendo em vista o seu sucesso, o que torna mais provável — e potencialmente mais eficiente — a presença de poucos players dominantes no mercado.

Plataformas oferecem conveniência, como uma ponte que conecta dois lados do mercado, ao mesmo tempo em que se tornam estruturas essenciais de conexão. Pela dominância que alcançam, definem preços, qualidade e investimentos em inovação sem sofrer restrições substanciais de rivais ou de seus usuários.

O tamanho das plataformas estabelecidas, as expectativas dos usuários quanto ao status quo e suas estratégias para engajar (lock-in ou fidelizar) seus usuários, com o uso massivo de dados coletados, reforçam suas posições dominantes. Assim, não é surpresa que a 99 e a Meituan precisem fazer vultuosos investimentos até para se acomodar à posição do iFood no mercado de delivery.

Estas plataformas costumam agregar vários serviços, como um grande ecossistema, para gerar valor aos usuários e, com isso, aumentar os montantes cobrados. Muitas não cobram dos consumidores pelo acesso a suas redes – e pagariam diretamente caso isso não incentivasse fraudes. Em vez disso, as plataformas oferecem serviços gratuitos (streaming, nuvem e mensagens, meios de pagamento, etc.) e catálogo de ofertas direcionadas.

Em palestra no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em maio de 2025, o Prêmio Nobel de Economia Jean Tirole apontou que, enquanto cobram preço zero dos consumidores pelos acessos, muitas plataformas geram receitas por duas vias alternativas:

  1. vendas diretas de produtos e serviços próprios; e
  2. taxas pagas por terceiros, frequentemente comissões ad valorem que podem chegar a 30% do valor transacionado.

Este tratamento diferente entre os tipos de usuários é resultado de uma delicada estratégia de equilíbrio, fundamentada nos fortes efeitos de rede de cada lado da plataforma. Assim, evita-se onerar aquele usuário mais sensível a aumentos de preços, favorecendo sua entrada por meio da oferta de um mix de serviços e não cobrando pelo acesso.

A cobrança de taxas ad valorem excessivas motivou preocupações quanto ao tratamento equitativo do lado dos negócios que precisam da plataforma, como comerciantes, anunciantes, desenvolvedores de aplicativos e meios de pagamento.

Em conjunto com a contestabilidade das plataformas, o tratamento dado aos negócios dentro da plataforma é um dos elementos cruciais da regulação europeia, que lançou o Digital Market Act em 2022. De fato, tanto no Brasil quanto em órgãos antitruste internacionais, acumulam-se casos de conduta abusiva na economia digital.

Como pano de fundo, questiona-se o acesso equânime aos serviços essenciais dos negócios que transacionam nessas plataformas (preocupação com self-preferencing) e se eles recebem uma parcela proporcional à sua contribuição ao ecossistema.

Assim como no contexto europeu, o Brasil também começa a lidar com esses desafios por meio de propostas regulatórias. Em 2024, o Ministério da Fazenda propôs uma regulação específica para plataformas digitais dominantes, visando aprimorar e adaptar o arcabouço nacional aos problemas identificados.

Similarmente ao modelo europeu, a proposta atribui ao órgão antitruste nacional a identificação das plataformas digitais sistemicamente relevantes, que ficariam sujeitas a obrigações de transparência, notificações prévias de fusões e medidas para mitigar distorções concorrenciais. O Cade também teria suas práticas e diretrizes ajustadas aos novos insights da teoria econômica no tema.

Os anúncios da 99 e da Meituan dão uma medida das elevadas barreiras em plataformas digitais, reforçando a necessidade de uma política pública eficaz. Portanto, enquanto a proposta da Fazenda está alinhada às iniciativas internacionais, sua efetiva implementação é repleta de desafios, ao exigir uma coordenação institucional competente, capacidade técnica para acompanhar condutas complexas e mecanismos de enforcement relativamente ágeis.

*Adriana Hernandez Perez é consultora da Tendências Consultoria. Doutora em Economia pela Toulouse School of Economics (França), mestre em Economia pela FGV-RJ e bacharel em Economia pela UFRJ

**Fabiana Tito é sócia e diretora de Novos Negócios da Tendências Consultoria. Doutora em Teoria Econômica pela FEA/USP, mestre em Economia da Concorrência e Regulação pelas Instituições Universitat Pompeu Fabra e Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha) e bacharel em Ciências Econômicas pela FEA/USP, com especialização em Direito Econômico pela FGV

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