Por um teto de gastos reformulado

A emenda constitucional 126, de 2022, diz que até 31 de agosto de 2023 o governo deverá encaminhar projeto de lei complementar para instituir um regime fiscal sustentável que garanta estabilidade macroeconômica e condições para o crescimento da economia. Logo que a lei for aprovada, estará extinto o teto de gastos, o que pode acarretar efeitos opostos aos pretendidos.

O PT nunca apoiou o teto de gastos, preferindo interpretá-lo como um estorvo à expansão da economia. Houve quem o chamasse de “austericídio”. Desde sua fundação, o partido abraça a tese equivocada de que aumentos de gastos públicos sempre promovem o desenvolvimento. “Gasto é vida”, disse a ex-presidente Dilma Rousseff. O teto é “uma ideia estúpida”, afirmou Lula no discurso de posse. Na primeira reunião do Ministério, ele proibiu o uso da palavra “gasto”, que deveria ser substituída por “investimento”, visão que reiterou enfaticamente em entrevista recente.

Na verdade, o teto de gastos foi uma medida sensata. Restaurou a confiança no País, que havia sido abalada pela desastrosa expansão fiscal do governo Dilma. O teto permitiu reduzir a taxa básica de juros, a Selic, ao nível mais baixos da história (2%), o que teve efeito transformativo, particularmente no financiamento da habitação. Infelizmente, o aumento de gastos com a pandemia – corretamente excluídos do teto –, ao lado do impacto inflacionário derivado de problemas que o fenômeno provocou na cadeia mundial de suprimentos e da guerra na Ucrânia trouxeram de volta a Selic elevada, hoje de 13,75%.

O teto foi uma resposta à acomodação ao crescimento ininterrupto da despesa federal, uma consequência da irresponsabilidade fiscal da Constituição de 1988 e dos aumentos do valor real do salário-mínimo (170% nos governos do PSDB e do PT). Tudo isso contribuiu para a explosão dos gastos previdenciários, que passaram de 4% do PIB em 1987 para 14% do PIB. Hoje representam quase 50% dos gastos primários da União.

A inflação escondeu por um tempo o problema fiscal, pois corroía os benefícios previdenciários, os salários e outras despesas públicas. Essa “ajuda” desapareceu com o Plano Real, sendo substituída por maior carga tributária federal, que saltou de 16,6% do PIB para 21,7% entre 1993 e 2007. Tal saída esgotou-se com a rejeição da sociedade à elevação de tributos, caso da rejeição da continuidade da CPMF. Veio em seguida o aumento da dívida. Segundo Marcos Mendes, “em pouco mais de dois anos, entre dezembro de 2013 e maio de 2016, a dívida bruta saltou dezesseis pontos percentuais”.

O Brasil passou a ser um dos mais endividados países emergentes. Medida pela metodologia do FMI, a mais adotada, a relação entre a dívida e o PIB atingiu cerca de 90%, semelhante às da Líbia e do Egito. Desde os anos 1990, a despesa cresceu em média 6% ao ano, enquanto o PIB se expandia ao ritmo de 2,5% ao ano. Caminhávamos para uma crise de dívida que legaria inflação descontrolada, juros mais altos, desemprego e redução do potencial de crescimento. Os pobres seriam os mais prejudicados.

O teto objetivava enfrentar a demanda por gastos típica do sistema político e de parte da sociedade. Visava-se a instituir uma regra com força política para se opor à cultura da acomodação, que havia desmoralizado a regra de ouro, o superávit primário e até mesmo a lei de responsabilidade fiscal. Buscava-se interromper o crescimento sistemático da despesa, enquanto se estimulava as elites do Estado e da sociedade civil a redefinir prioridades do gasto, o que não aconteceu. A marcha batida da dívida continuou, moderada aqui e ali por surpresas favoráveis, mas temporárias, no comportamento da receita.

O teto de gastos, diz-se, será substituído por um arcabouço fiscal crível que evite a expansão inadequada do endividamento público. Fala-se em limite para a dívida, mas essa âncora fiscal seria frágil, alterada com frequência, dificilmente confiável. A interpretação tenderia a ser a de que o governo tem baixo ou nenhum controle sobre esse indicador. Isso porque a dívida poderá crescer por aumento da Selic diante de um aumento da inflação, por desvalorização cambial provocada por incertezas, por sentenças judiciais ou por calamidades. É por isso, como ainda assinala Marcos Mendes, que regras de despesa prevalecem “em três quartos das economias avançadas, segundo o FMI”.

Discute-se também a reinstituição de metas para o superávit primário. A experiência demonstrou que tais metas foram cumpridas essencialmente por aumento das receitas e não por redução das despesas. Em ambos os casos, seria possível conter ou reduzir o ritmo de crescimento da dívida, mas controlar despesas costuma ser mais favorável ao crescimento do que expandir a arrecadação tributária, principalmente quando temos um sistema de arrecadação já muito complexo e custoso.

A equipe do Ministério da Fazenda estaria considerando uma meta de despesa na composição do arcabouço fiscal. A ideia é correta, mas três dificuldades se antepõem à sua aceitação e viabilidade: (1) ela não teria a força de mandamento constitucional do teto de gastos; (2) poderia ser descumprida com uma simples medida provisória que teria tudo para ser aprovada pelo Congresso, que desde priscas eras professa uma cultura pró-gasto público; (3) mais difícil ainda seria convencer Lula a recuar de suas reiteradas posições contrárias ao teto de gastos e à sua suposta estupidez.

O mais adequado parece ser a preservação do teto de gastos, a ser redefinido aproveitando a experiência dos últimos seis anos. Há boas propostas, como a de dois de nossos melhores especialistas na área, Fabio Giambiagi e Manoel Pires, do IBRE, mas não será fácil. O ministro Fernando Haddad tem-se esforçado em mostrar compromisso com a responsabilidade fiscal e com o controle da dívida. Seu recente pacote fiscal é compatível com essa posição, ainda que composto de somente algumas estruturais permanentes.

A missão de formular um arcabouço fiscal crível é a maior entre todas. Dela depende o desempenho da economia e o êxito do governo, mas sem o componente de controle dos gastos será muito difícil cumpri-la.

Por: Mailson da Nóbrega, ex-Ministro da Fazenda e sócio da Tendências.

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