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Inadimplência bate recorde: mesmo com emprego em alta e inflação caindo, calotes disparam. Entenda por quê – O Globo

Efeitos colaterais do aumento dos juros, endividamento sobe e inadimplência é a maior em mais de dez anos, comprimindo o espaço para compras nos orçamentos domésticos

O desemprego está nas mínimas, a renda das famílias bate recorde, a inflação dá sinais de alívio, mas o brasileiro nunca esteve tão endividado, com a inadimplência nos maiores níveis em mais de dez anos. São os efeitos colaterais do aumento dos juros, apontam economistas. A taxa básica, a Selic, vem subindo desde setembro de 2024, quando estava em 10,75% ao ano. Na última quarta-feira, assim como em julho, o Banco Central (BC) a manteve estacionada em 15%, e tudo indica que permanecerá assim “por período bastante prolongado”, avisou a autoridade monetária.

Essa taxa nas alturas significa juros ainda mais altos no dia a dia, o que se reflete em parcelas mais caras nas compras a prazo e no pagamento de empréstimos, comprimindo o orçamento das famílias já muito endividadas. Um cenário que deve contribuir para esfriar o consumo até o fim do ano e agravar a esperada desaceleração da economia.

Maior inadimplência em mais de dez anos

A proporção de famílias com contas ou dívidas em atraso atingiu em agosto o maior nível na pesquisa mensal da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), iniciada em 2010, com 30,4% dos entrevistados. A entidade projeta 30,9% em dezembro, em meio às compras de Natal.

Já a taxa de inadimplência das pessoas físicas junto às instituições financeiras é a mais alta desde 2013, segundo o BC: 6,5% da carteira de crédito com recursos livres. Nas projeções da Tendências Consultoria, essa taxa deverá se manter nesse nível, com leve alta, até maio de 2026.

O aumento dos calotes ocorre em meio ao endividamento elevado. Na pesquisa da CNC, em agosto, 78,8% das famílias declararam ter dívidas, em atraso ou em dia. A fatia pode chegar perto de 80% no fim do ano, estima Fábio Bentes, economista-chefe da CNC.

Freio já foi acionado

O freio nos gastos já é uma realidade na casa da autônoma Adriana Oliveira, de 37 anos, que vê metade da renda familiar ir para a prestação mensal de R$ 2 mil do financiamento de seu apartamento, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio.

A família de Adriana colocou o imóvel financiado em Campo Grande para alugar e se mudou para Xerém, em Duque de Caxias — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

Ela precisou reduzir a exposição ao crédito para reequilibrar as contas. Para ajudar nisso, e priorizar o sonho do filho Enzo, de 9 anos, de ser jogador profissional de futebol, a família colocou o apartamento para alugar e se mudou para Xerém, em Duque de Caxias, onde o menino treina na divisão de base do Fluminense. E reduziu os cartões de crédito a apenas um para todos. Enzo foi para uma escola particular mais barata, e a família cortou passeios, viagens e compras. O fim de ano será de menos gastos, segundo Adriana.

— Antes, fazíamos muitos parcelamentos. Assim que uma prestação acabava, já começávamos outra. As dívidas no cartão representavam de 40% a 50% da nossa renda. Agora, são cerca de 25% — ela conta. — Hoje, compro apenas o necessário. Além de o custo de vida estar mais alto, também entendemos que foram escolhas nossas.

Endividamento cresce com juro alto

Segundo Bentes, o endividamento cresce com o juro alto, ao mesmo tempo em que o excesso de dívidas torna o aperto monetário mais doloroso.

O comprometimento da renda das famílias com o pagamento de dívidas ficou em 27,6% em junho, conforme o BC. Isso é igual a 2023, após o ciclo de aperto de juros de 2021 a 2022, mas está acima de 2017 (na casa de 22% a 23%), após o BC terminar o ciclo de alta que acompanhou a recessão 2014-2016.

Com o orçamento mais comprometido, a alta nos juros pesa mais no bolso.

— Vivemos em um país de renda média baixa e juros estratosféricos. Isso já é, por si só, uma combinação desfavorável para o equilíbrio do orçamento doméstico — diz Bentes. — Some-se a isso o baixo nível de educação financeira e o acesso facilitado ao crédito, e temos uma situação em que muitas pessoas assumem dívidas sem avaliar as condições e acabam presas a elas.

Com renda insuficiente, família fica sempre no vermelho

A renda insuficiente para a família faz Jaqueline Valle, de 34 anos, viver cronicamente no vermelho, alternando parcelas. O salário de vendedora numa loja, complementado com a venda de bolos, não cobre todas as despesas.

A saída é gastar mais do que ganha em cartões de crédito — emprestados por familiares e amigos, pois ela está com o nome sujo. Os problemas começaram após Jaqueline perder o marido na pandemia, vítima da Covid-19, e assumir sozinha o sustento dos filhos, Kauê, de 13 anos, e Kayck, de 11.

— Se não for parcelado, não tenho nada. Se depender de ter o dinheiro na mão, nunca consigo comprar, porque sempre aparece outra necessidade. Então, me endivido, mas sigo em frente, sempre pensando nos meus filhos — ela diz.

4 dívidas negativadas por CPF, segundo Serasa

Jaqueline está longe de ser um caso isolado: corroborando os dados da CNC, pesquisa da Serasa apontou que o país tinha 68,2 milhões de inadimplentes em julho, o maior contingente já estimado pela pesquisa, iniciada em 2016.

Cada consumidor contrai, em média, dívidas que somam R$ 6.177, pouco mais que quatro salários mínimos.

— Em média, um CPF tem quatro restrições (dívidas negativadas). Isso mostra o quão difícil é para o brasileiro voltar a ficar adimplente — diz Camila Abdelmalack, economista da Serasa.

Inclusão e educação financeira

Segundo a economista Alessandra Ribeiro, diretora de Macroeconomia da Tendências, a inadimplência está mais elevada do que o esperado nos modelos da consultoria, mesmo considerando o atual patamar da Selic e outras variáveis, como emprego e renda.

Uma das hipóteses para a surpresa negativa é que a recente inclusão bancária, com a proliferação de contas digitais, tenha levado as dívidas financeiras, especialmente as do cartão de crédito, a consumidores que eram menos habituados com elas.

De 2018 a 2025, o número de clientes pessoas físicas nas instituições financeiras passou de 77,2 milhões para 163 milhões, segundo a Zetta, entidade que representa fintechs, citando dados do BC.

— Pode ter algum efeito da entrada de pessoas que não estão acostumadas, que não têm educação financeira. Aí, num ambiente de juros mais altos, elas têm mais dificuldades de lidar com esse ciclo — afirma Alessandra.

‘Deus abençoa’

A ambulante Paula Alves, de 29 anos, que vende suco de laranja no Centro do Rio, lança mão de dois cartões de crédito, que têm limite somado maior que sua renda, para fechar as contas do mês.

Segundo ela, as dificuldades vêm desde a pandemia. Suas vendas caíram com a redução do movimento nas ruas do Centro.

— Passo o cartão e mês que vem decido o que vai acontecer. Deus abençoa — diz Paula, acrescentando que tenta equilibrar os pagamentos com os ganhos e quitar as dívidas na data correta.

Além do juro mais alto, com a inadimplência, os bancos aumentam o rigor para aprovar empréstimos, o que restringe o acesso ao crédito e tende a frear o consumo, lembra Camila, da Serasa.

Esse freio faz parte da política de juros do BC, com o objetivo de trazer a inflação para a meta de 3% ao ano.

Por outro lado, o gosto para as famílias e o comércio é amargo. Um ritmo mais fraco no consumo já apareceu, em parte, no Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, conforme o IBGE. E as vendas do varejo caíram em julho pelo quarto mês seguido, algo só visto na crise do apagão, em 2001, e na recessão de 2014-2016, lembra Bentes, da CNC.

Vendas de automóveis desaceleram

A venda de automóveis, por exemplo, pisou forte no freio: após saltar 13,2% em 2024, os emplacamentos subiram só 2,9% no acumulado deste ano até agosto, segundo a Fenabrave, entidade que representa as concessionárias de veículos.

Para o consultor Rodnei Bernardini, especialista no mercado de crédito para veículos, há uma pequena “ressaca” após um crescimento excessivo, acima das capacidades, em 2024.

O financiamento para a aquisição de veículos saltou 18,4% no ano passado, acima dos 12,3% registrados no crédito total para pessoas físicas com recursos livres. Os juros mais altos frearam o movimento, e a alta da inadimplência é uma consequência esperada a partir da reação do BC, completa Bernardino.

O risco, no cenário da Tendências, é de uma freada mais forte no consumo.

Segundo Anna Carolina Gouveia, responsável pela Sondagem do Consumidor do FGV Ibre, o endividamento excessivo vem pesando sobre o Índice de Confiança do Consumidor (ICC) desde a virada do ano, e isso aparece na evolução do indicador de “situação financeira futura” das famílias. Após atingir um pico em novembro, esse componente “vem piorando drasticamente”, com 27 pontos de queda até agosto.

Reprodução. Confira o original clicando aqui!