Contas públicas: ajuste fiscal terá de mexer com interesses e rever benefícios – Estadão
- Na Mídia
- 27/04/2025
- Tendências

Próximo governo terá de enfrentar de vez o dilema de acertar as finanças públicas se quiser evitar que a dívida brasileira escale para níveis ainda mais preocupantes
As contas públicas se transformaram em um dos principais problemas econômicos do Brasil nos últimos anos. O País se tornou altamente endividado para uma nação emergente, o que piora a percepção de risco da comunidade internacional e afasta investimentos da economia brasileira.
A grande preocupação entre analistas e investidores é que não há uma sinalização de um plano de longo prazo do governo para que esse endividamento seja estancado. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, estima que a dívida bruta do Brasil deve ultrapassar a barreira de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2030.
“Isso é grave para um país emergente”, afirma Marcus Pestana, diretor-executivo da IFI. “O calcanhar de Aquiles (da economia) é a questão fiscal.”
Em geral, as economias emergentes com endividamento crescente são consideradas mais arriscadas. Os investidores retiram recursos do país, o que leva à desvalorização da taxa de câmbio, à piora da inflação e, consequentemente, ao aumento dos juros. Os investimentos das companhias ficam mais caros, assim como o consumo das famílias. É um cenário de uma atividade econômica mais fraca.
“Há uma comunicação direta entre o resultado fiscal e a taxa de juros. O desequilíbrio crônico fiscal permanente gera inflação. A inflação dá em juro alto, e o juro alto é a trava da economia. É um círculo vicioso que tem de ser quebrado”, afirma Pestana.
Classificação de risco
O tamanho do endividamento é um dos principais pontos analisados pelas agências de classificação de risco. Em setembro de 2015, o Brasil perdeu o grau de investimento e nunca mais voltou ao grupo das economias consideradas mais seguras.
O grau de investimento concede ao país uma espécie de selo de bom pagador. Muitos fundos de pensão, por exemplo, determinam em seus estatutos que só podem investir em papéis de países que são classificados como grau de investimento, por causa do menor risco de calote.
O Brasil só vai conseguir mudar a trajetória da sua dívida se voltar a registrar superávits primários – o resultado entre receita e despesa, sem contar o pagamento de juros. A IFI também projeta que esse saldo positivo necessário é de R$ 310 bilhões (ou 2,5% do PIB).
Para se ter uma ideia do ajuste necessário, em 2025, por exemplo, a meta de resultado primário traçada pela equipe econômica é zero – com um banda de tolerância de 0,25 ponto porcentual para mais ou para menos. A de 2026 é de 0,25% do PIB, e os alvos para 2027, 2028 e 2029 são de saldos positivos de 0,50%. 1% e 1,25% do PIB, respectivamente.
“Precisamos ter um farol alto nessa questão das contas públicas, porque se trata, na verdade, de discutir o financiamento do desenvolvimento econômico”, diz Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo. “É para isso que a gente discute as contas públicas, não só pela questão dos efeitos de curtíssimo prazo do que essa dinâmica fiscal possa acarretar para indicadores de mercado, como o dólar, a taxa de juros e a inflação.”
Regra fiscal frágil
A leitura que se faz é a de que o próximo governo vai ter de encarar o problema das contas públicas se quiser evitar que a economia brasileira entre numa espiral de piora.
Desde 2014, com exceção de 2022, o Brasil tem colhido sucessivos déficits primários. No auge da incerteza fiscal depois do impeachment de Dilma Rousseff, o governo Michel Temer adotou o teto de gastos, que acabou sendo substituído pelo arcabouço fiscal em 2023, no primeiro ano do terceiro mandato de Lula.
Entre os analistas e dentro do próprio governo, há dúvidas sobre a sobrevida do arcabouço fiscal. No final do ano passado, a equipe econômica do ministro Fernando Haddad apresentou um pacote de contenção de gastos numa tentativa de retomar a confiança dos investidores com o rumo das contas públicas. O anúncio, no entanto, foi considerado aquém do necessário por boa parte dos economistas.
O arcabouço fiscal prevê um limite máximo de 2,5% para o crescimento das despesas, mas esse espaço começou a ser espremido pelo avanço de despesas obrigatórias, como reajuste do salário mínimo, gastos com Previdência, além dos pisos constitucionais da Saúde e da Educação.
A equipe econômica já indicou que pode faltar dinheiro em 2027, no primeiro ano do próximo governo, para investimentos e custeio da máquina pública.
“O próximo governo vai receber as contas públicas num cenário relativamente deteriorado, mas não péssimo”, afirma João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Mas, se o objetivo do governo for, em algum momento, no médio e longo prazos, estabilizar a situação fiscal para que deixe de ser um problema e a gente possa voltar a discutir outros fatores importantes da vida política brasileira, ele vai precisar se deparar com uma série de questões que são muito mais politicamente controvertidas, potencialmente impopulares.”
Caminho de dificuldade
O ajuste necessário para a economia brasileira não é trivial. Ele tem de ser estrutural e vai precisar resolver uma equação difícil: conciliar demandas sociais básicas para boa parte da população e reduzir o poder das pressões corporativas e individuais, tanto do setor público como do privado, que buscam manter ou conquistar novos benefícios por meio de lobbies.
“Estamos vendo o tempo todo pedido de bônus para servidores públicos, critérios criativos de remuneração, greves, lobbies do setor privado”, afirma Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica e sócio-diretor da Gibraltar Consulting. “A crise vai chegar, e o descontrole das contas públicas e o seu impacto na economia vão chegar a todos nós”, acrescenta.
Ao longo dos últimos anos, a economia brasileira distribuiu uma série de benefícios para grupos e setores específicos, sem uma cultura de avaliação periódica, com metas e indicadores claros de performance, para identificar se eles ainda são meritórios e se contribuem com o crescimento da renda e do País. Em geral, os analistas dizem que o Brasil sofre de um mal crônico: benefícios concedidos dificilmente conseguem ser retirados depois.
Em 2025, os gastos tributários federais, ou seja, o montante que o governo deixará de arrecadar, devem somar R$ 543,7 bilhões, o equivalente a 4,4% do PIB. O maior de todos é o Simples, que, sozinho, terá um custo de R$ 121 bilhões.
“Não existe um consenso em relação ao que o Simples quer fazer. Ele existe para facilitar a abertura de novas empresas, para formalizar as que já existem? Faz sentido o Simples ter um sarrafo tão alto de faturamento e de lucro?”, questiona Leme. “No fim das contas, o que acabamos vendo é que é um instrumento de planejamento tributário. As empresas que são grandes acabam se desmembrando de forma a não serem efetivamente tributadas.”
Equilibrar as contas públicas também poderá passar por outros caminhos espinhosos. Há um diagnóstico de parte dos especialistas de que o País terá de rever benefícios sociais que são atrelados ao salário mínimo e desindexar os gastos de Saúde e Educação.
Historicamente, o ajuste das contas públicas sempre foi uma tarefa árdua. O Brasil possui um Orçamento bastante rígido e, portanto, com pouca margem de manobra para eventuais cortes de gastos. Em geral, nos momentos de aperto fiscal, é a despesa com investimento que acaba sofrendo mais.
“A crise vai chegar, e o descontrole das contas públicas e o seu impacto na economia vão chegar a todos nós” (Marcos Lisboa – Ex-secretário de Política Econômica)
“Eu entendo que o grande desafio passa pelo convencimento da área política e da sociedade como um todo. Como é que eu vou fazer, por exemplo, mudanças na lei de correção do salário mínimo, que tem impacto sobre a Previdência, se ao mesmo tempo tem juízes ganhando centenas de milhares de reais por mês?”, questiona Salto. “Há um componente ético nessa discussão que precisa entrar para ajudar a legitimar a agenda do ajuste fiscal.”
Parte da rigidez orçamentária pode ser explicada pelo desenho da Constituição, em 1988. Na saída do período ditatorial, a Constituição – chamada de cidadã – buscou garantir ao País um Estado de bem-estar social numa conjuntura marcada por uma imensa desigualdade.
“A opção do constituinte de abrir espaço para o Estado que gostaríamos de ser colocou muitos ganhos importantes para a população em geral”, afirma Leme. “Se nós queremos ser um país que oferece tudo isso de forma pública e para todos, precisamos criar um sistema que consiga dar as condições financeiras necessárias para o estabelecimento, o aperfeiçoamento e a manutenção de um sistema como esse. Isso por si só já joga o nosso gasto público muito para cima em relação a outros pares.”
Há ainda entraves mais recentes, como a perda de influência do Executivo sobre o comando do Orçamento, dado o crescimento das emendas parlamentares.
“Efetivamente, hoje a gente tem algo como 4% ou 5% do Orçamento à disposição do Executivo”, afirma Leme. “E esse espaço está se reduzindo ainda mais por conta das negociatas relativas às emendas parlamentares.”
“Independentemente do partido que entra no governo, ele está de mãos atadas em grande parte, porque terá de mexer na Constituição e em leis complementares para qualquer reforma mais estrutural. São leis que, por conta da sua natureza jurídica, requerem um quórum maior do que só a maioria simples”, acrescenta.
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