Com renda maior e inflação menor, ‘mimos’ como iogurte e chocolate voltam ao carrinho de compras – O Globo

Com renda maior e inflação menor, 'mimos' como iogurte e chocolate voltam ao carrinho de compras - O Globo

Brasileiros da classe DE, com renda de até R$ 3,2 mil por mês, compram mais produtos do que há 12 meses, mostra pesquisa. Consumo de carne também cresceu

João Luiz Corrêa, 66 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte do Rio, é taxista. Após anos de trabalho como autônomo, ele se aposentou no início deste ano e passou a ganhar pouco mais de R$ 1.400 por mês. Manteve o táxi para complementar a renda, mas se permite trabalhar menos horas. E não é a única nova “regalia” que diz ter agora, com um pouco mais de dinheiro no bolso.

No supermercado, passou a comprar pacotes de salgadinhos, queijos, iogurtes de marcas mais caras, frutas em maior quantidade e, principalmente, sua marca favorita de cerveja premium. Diabético, reveza a versão zero álcool, de preço mais alto, com a regular.

— Hoje, consigo comprar algumas coisas que antes não considerava tão essenciais assim — diz Corrêa. — Tento não abusar muito por conta da saúde, mas costumo atacar os lanches quando chego em casa mais tarde, depois de rodar no táxi. Toda semana tem futebol e cerveja com os amigos.

As mudanças no cotidiano dele refletem o que vem acontecendo principalmente no carrinho de compras de consumidores da chamada classe DE no país — domicílios com renda de até R$ 3,2 mil mensais, segundo a Tendências Consultoria —, que voltaram a comprar itens supérfluos.

Os brasileiros, em geral, levaram para casa 7,8% mais itens a cada ida às compras nos 12 meses terminados em março em comparação com o mesmo período imediatamente anterior. Três categorias se destacam neste avanço: mercearia doce (9,3%), bebidas (9,4%) e bazar e medicamentos de venda livre (9,9%), mostra pesquisa da Kantar/Worldpanel Division.

Chocolate e salgadinho

O número médio de categorias no carrinho do consumidor brasileiro é de 59 e se mantém estável. Mas na classe DE, houve aumento nos dois últimos anos, passando de 55 para 57. Na prática, commodities como feijão e arroz, o básico da refeição do brasileiro, não ficam fora, mas estão abrindo espaço para itens como biscoitos, chocolates, salgadinhos de pacote, refrigerante, cerveja e ração para cães e gatos.

Essas mudanças no consumo acompanham dois fatores principais. Um deles é o cenário macroeconômico que garantiu fôlego a esses consumidores para acrescentar itens ao carrinho: inflação reduzida, desemprego no menor patamar em dez anos (7,9% em março) e ganho de renda da população, sobretudo em razão do salário mínimo e do aumento de benefícios assistenciais.

O outro é o avanço do consumo de refeições fora de casa, atrelado a mais pessoas no mercado de trabalho. Como resultado, as compras de alimentação se tornam menos frequentes, porém maiores, e privilegiam itens que trazem praticidade, sabor e prazer.

— Toda vez que a renda avança, o primeiro gasto a crescer é com alimentação: carnes vermelhas, iogurtes, frango. Cresce uma tendência de indulgência e consumo mais individual e prático, com algo pós-jantar, caso do chocolate, ou até em substituição a essa refeição, como ocorre com o salgadinho de pacote — explica Raquel Ferreira, diretora comercial da Kantar.

Consumo de carne cresce

É o que tem feito Elisa Lima, de 30 anos, de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Beneficiária do Bolsa Família, suas compras no mercado se resumiam ao “básico do básico” com R$ 600 mensais. Há três meses, foi contratada numa vaga temporária de ajudante de cozinha e dobrou sua renda. A cesta de compras também cresceu, conta:

— Tenho tirado um dinheiro para me mimar. Compro uma besteira ou um biscoitinho melhor pelo ditado: “trabalho para isso”.

Na classe DE, que em 2023 equivalia a cerca de 50% dos lares do país, mais da metade da renda é garantida por benefícios governamentais, como Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, pensões e aposentadorias, diz o economista Lucas Assis, da Tendências. São rendimentos que avançaram nos últimos anos.

— Estamos vindo de um período de forte injeção de transferência de renda para essas classes. Em 2023, veio o reajuste (acima da inflação) do salário mínimo e, este ano, outro. Com isso, o piso dos benefícios previdenciários também subiu acima da inflação. Em paralelo, a inflação perdeu fôlego — diz Assis.

O consumo de carne bovina acompanha a tendência, tendo avançado 4,2% em ocasiões de consumo dentro dos lares do país como um todo no semestre terminado em março, na comparação com igual período de um ano antes. E alcança a classe DE.

— Fiquei por um tempo precisando comer mais frango. Agora estou conseguindo comprar um pouco mais de alcatra e carne moída (patinho) — diz o taxista Corrêa.

A escolha da maioria dos lares recai sobre acém e músculo, cortes que oferecem melhor custo/benefício, com preço entre 9% e 12% abaixo da média para carne bovina, segundo a Kantar. Com maior poder de compra, a classe DE faz escolhas na hora de consumir e, esporadicamente, coloca filé mignon e patinho no carrinho, optando por peças de maior valor agregado.

Iogurte ‘gourmetizado’

O iogurte, um dos símbolos do ganho de renda da população mais pobre na esteira do Plano Real, está de volta à cesta de compras, e sob efeito do “raio gourmetizador”. Registrou alta de 3% em volume nos 12 meses encerrados em março contra o igual período imediatamente anterior. Em valor, porém, o aumento foi de 15%.

— O consumidor está gastando de maneira expressiva. Com o iogurte, três vezes a inflação do período. Tem mais variedade de produtos dentro de casa, incluindo creme de leite, as massas estão crescendo, queijos — diz Raquel.

Na classe DE, ela destaca, sobe o consumo de iogurtes em embalagens mais individuais, como o “grego” e os proteicos, o que sinaliza escolhas por artigos de maior valor agregado. No primeiro trimestre houve um acréscimo de 230 mil lares consumindo iogurte “grego” na comparação com igual período de 2023. O litro desse produto é 15% mais caro que o do tradicional de bandeja.

A expansão de redes de atacarejo, abrindo acesso à população a esse canal de compras, e embalagens promocionais — a estratégia de oferecer pacotes menores para o preço caber no bolso — também ajudam nessa mudança, diz a pesquisa da Kantar.

O ganho no carrinho da classe DE, observa Lucas Assis, da Tendências é um alento. Segundo ele, o crescimento da renda deve se manter no curto prazo, até 2025, mas em ritmo de desaceleração ante os últimos dois anos. Mas ele lembra que a alta vem sobre uma base deteriorada de comparação.

— Essa última década teve recessão e pandemia, com forte efeito na renda das famílias mais próximas da linha da pobreza. Ainda há muita desigualdade, informalidade e subocupação da força de trabalho — advertiu.

Outra preocupação, salienta Rosana Salles-Costa, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, é em relação à saúde da população mais próxima da insegurança alimentar. Com mais recursos, as pessoas fazem escolhas. Mantêm o feijão com arroz, mas buscam o que julgam ser “direito de todos”, como biscoito e itens mais baratos e práticos no consumo, como macarrão instantâneo, mas nem tão saudáveis.

— Gôndolas promocionais, com chocolates e salgadinhos, estão ao lado do caixa nos mercados. As pessoas aumentam o consumo desses itens, de bebidas açucaradas, de ultraprocessados, que agora têm preços mais baixos — diz ela. — Mas são itens que podem aumentar os casos de obesidade e doenças crônicas. Isso precisa ser acompanhado para se pensar em políticas públicas de saúde.

Reprodução. Confira o original clicando aqui!

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