Planeta usará ‘cheque especial ambiental’ até dezembro por ter usado limite de recursos naturais neste ano – O Globo
- Na Mídia
- 03/11/2025
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ONG aponta que em 2025 Terra já atingiu em julho o dia em que a humanidade esgota todos os recursos renováveis; em 2024, marca ocorreu em agosto
A notícia é alarmante e foi divulgada recentemente pela Global Footprint Network, organização que desenvolve ferramentas para calcular a sustentabilidade global: este ano o chamado Dia de Sobrecarga da Terra, data em que a humanidade esgota todos os recursos que o planeta é capaz de regenerar em um ano, aconteceu no último dia 24 de julho. Em 2024, isso havia ocorrido em 1º de agosto. Na prática, a Terra usará o limite de seu “cheque especial” em quase todo o segundo semestre, algo inédito até então, já que os recursos naturais estão sendo consumidos numa velocidade 1,8 vez maior do que os ecossistemas conseguem se regenerar.
“As pessoas estão emitindo mais CO₂ do que a atmosfera pode absorver, usam mais água doce do que é possível repor, cortam árvores numa velocidade maior do que novas podem crescer, pescam mais rápido do que as reservas de peixe se reabastecem”, explica a Global Footprint em nota, lembrando que o déficit de recursos começou a ser notado já na década de 1970 e, nos últimos 20 anos, a data-limite tem chegado cada vez mais cedo.
Os especialistas alertam que o uso de recursos além do que a natureza pode renovar compromete a segurança do planeta no médio e longo prazos. Os sinais desse esgotamento, com diversos pontos de inflexão (limite crítico que quando ultrapassado pode trazer consequências irreversíveis ao sistema climático), estão por toda parte, observa Helga Correa, especialista em conservação do WWF-Brasil.
Um estudo feito pela Universidade de Exeter e parceiros internacionais mostra que os recifes de corais de águas quentes, que geram até US$ 9,9 trilhões de renda por ano (sendo US$ 31 bilhões só no Brasil) e dos quais dependem um bilhão de pessoas para obter alimento, estão morrendo de forma generalizada por conta do aumento da temperatura causado pelo aquecimento global.
O derretimento das camadas de gelo polares lançou 273 bilhões de toneladas de gelo por ano entre 2000 e 2023 nos oceanos. Todas as regiões glaciares tiveram perda de massa líquida em 2024 pelo terceiro ano consecutivo, uma novidade. Isso pode provocar o colapso das principais correntes oceânicas, levando a mudanças no clima em diversas regiões da Terra, inclusive da Amazônia, que tem papel decisivo na regulação climática global — e também está se aproximando de um ponto de não retorno. Isso, diz a especialista do WWF-Brasil, é resultado de desmatamento, mudanças climáticas e degradação, que enfraquecem os mecanismos de regeneração da floresta.
— Já estamos atingindo muitos pontos de inflexão do sistema terrestre que causarão danos catastróficos, a menos que a humanidade tome medidas urgentes. O lado positivo é que com conhecimento e tecnologia é possível buscar formas de produção sustentáveis e garantir uma transição inclusiva das populações, especialmente as que menos têm acesso aos recursos — diz a especialista.
De acordo com diversos estudos, foi no início dos anos 1990 que o mundo se deu conta da aceleração de emissões de gases que provocaram o chamado efeito estufa, o aumento da temperatura da Terra pela retenção do calor por gases atmosféricos. Esse fenômeno, diz o especialista em Direito Ambiental e Mudanças Climáticas pela PUC-SP, o advogado Rafael Guimarães, começou a crescer quando o planeta passou a ter a produção de energia baseada na queima de combustíveis fósseis, seja no início do século XIX, com o carvão, seja no século XX, com o petróleo.
— Soma-se a isso um completo descaso com a natureza. A busca pelo consumo pressionou e provocou uma industrialização com poluição. E para atender um crescente mercado consumidor, a industrialização aumentou — diz.
Segundo os especialistas, a Revolução Industrial e o crescimento populacional, com melhores condições sanitárias e econômicas, contribuíram para o chamado “consumo de massa” , pressionando ainda mais o uso dos recursos da Terra. A população mundial aumentou oito vezes nos últimos 200 anos, passando de 1 bilhão de habitantes para mais de 8 bilhões. E o consumo de energia que era de cerca de 5 TW (terawatts, unidade de potência que representa um trilhão de watts) passou para mais de 180.000 TW em 2024, segundo dados do Energy Institute.
E mais recentemente a ascensão da classe média em países em desenvolvimento, amplificou esse movimento. A China, diz Guimarães, teve um papel de destaque porque concentra cerca de 20% da população mundial. O país asiático, que era predominantemente rural, com áreas de extrema pobreza e fechado ao mundo nos anos 1950, promoveu reformas e abertura econômica, a partir de 1978, e viu seu Produto interno Bruto (PIB) sair de menos de US$ 150 bilhões para US$ 18,3 trilhões em 2024 — podendo chegar a US$ 19,5 trilhões este ano, apenas atrás dos EUA.
— Na China quase todo mundo era camponês, e havia muita pobreza. Com a industrialização, o governo criou oportunidades e tirou muitas pessoas da miséria. O país asiático tem feito alguns esforços importantes na busca de modos de produção mais sustentáveis, como no caso da eletrificação dos carros, mas ainda é um dos mais joga CO₂ na atmosfera. Isso mostra que essa transição é muito complicada — diz Paulo Feldmann, professor de Economia da USP.
Em seu processo de industrialização, a China tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza ao longo das últimas décadas. E expandir a classe média, que hoje conta com 400 milhões de pessoas, continua a ser uma das metas do governo, que busca aumentar o consumo interno e melhorar a prosperidade das pessoas. A renda média na China em 2024 foi de US$ 5.747 frente aos US$ 100 dos anos 1950.
O crescimento da renda permitiu que os chineses consumissem mais bens, de alimentos a carros. Um estudo do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) mostrou que o consumo de carnes saiu de uma média de menos de 10kg por pessoa nos anos 1970 para 70 kg em 2022. E pode chegar a 94 kg per capita em 2031. A China tornou-se o maior mercado automobilístico e sua frota ultrapassou os 350 milhões de unidades em 2025. O país lidera o mercado global de vendas geradas com aparelhos eletrônicos: US$ 212,9 bilhões em 2025.
Redução da pobreza
Dois outros países populosos, Brasil e Índia, também deram sua contribuição para o aumento do consumo tirando pessoas da pobreza extrema. Na Índia, o Banco Mundial estima que 171 milhões de pessoas deixaram essa situação (população com menos de US$ 2,15 por dia para viver) entre 2012 e 2023. Hoje, a classe média na Índia tem cerca de 432 milhões, mas o número deve crescer para 715 milhões até 2031, segundo o governo.
No Brasil, mais de 14 milhões de pessoas saíram da pobreza, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, desde 2023. No ano passado, pela primeira vez desde 2015, o país voltou a ser de classe média, segundo um estudo da consultoria Tendências. O estudo aponta que 50,1% dos brasileiros agora pertencem às classes A, B ou C, com a classe C representando 31%. Esta faixa, considerada como classe média baixa, compreende famílias com renda mensal entre R$ 3.400 e R$ 8.100. No Brasil, essa melhora das condições econômicas, elevou o consumo per capita de carne entre 1990 e 2021, passando de 53,03kg anuais para 94,98kg.
Para Helga Correa, o caminho para um futuro seguro e sustentável passa por abraçar os “pontos de virada positivos”, que incluem a rápida adoção de energias limpas e a restauração de ecossistemas. Ela explica que manter a biodiversidade é a melhor defesa contra o desastre climático, e a COP30 visa isso: criar uma cascata de mudanças positivas onde a inovação sustentável se torne a opção mais atraente e acessível. Para isso, é fundamental que governos, capital privado e a sociedade estejam juntos para que o Brasil maximize seu potencial em tecnologias verdes e promova essa transformação global.
A falta de governança global, para Feldmann, é um obstáculo para que se busque modos de produção mais sustentáveis. Sem ela, o atual governo dos Estados Unidos, que prioriza o petróleo e despreza o Acordo de Paris, ganha protagonismo e atrasa avanços.
— A pergunta é: como exigir da população uma preocupação ambiental desvinculada da economia se o governo assim não o faz? — questiona o advogado Rafael Guimarães.
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