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Contingenciamento orçamentário: Brasil e EUA – O Estado de S. Paulo

Por Maílson da Nóbrega*

Em 1974, o Congresso americano aprovou o Impoundment Control Act, estabelecendo normas sobre contingenciamento de dotações orçamentárias do governo federal. Foi uma reação ao que se considerou abuso de poder pelo então presidente Richard Nixon, que deixara de executar despesas de programas aos quais se opunha.

No mesmo ano, criou-se o Congressional Budget Office (CBO), uma poderosa agência que tem papel relevante em assuntos orçamentários. Entre outros objetivos, cumpre-lhe prover apoio objetivo, não partidário, para auxiliar os parlamentares a lidar com assuntos envolvendo finanças públicas e economia. Ao CBO cabe também oferecer alternativas às informações prestadas ao Congresso por agências do Executivo.

O termo impoundment pode ser traduzido como o ato de apreender ou prender alguém, na forma da lei. Pode também designar a coleta e o acúmulo de água num reservatório. Nos Estados Unidos, significa uma ação do presidente da República para conter despesas orçamentárias. Seria o equivalente, no Brasil, ao contingenciamento de gastos por ato do Poder Executivo.

Diferentemente do Brasil, todavia, o Impoundment Control Act estabelece que o contingenciamento requer o exame do Congresso, que pode rejeitá-lo com apoio em manifestação do CBO. O presidente é obrigado a informar prontamente o contingenciamento e sua duração. Segundo a revista The Economist, terá sido o caso da recente suspensão da transferência de recursos orçamentários para a Ucrânia, que haviam sido autorizados pelo Congresso.

Pela Constituição americana, o Congresso tem o power of purse, isto é, o poder de decidir sobre finanças públicas. É ele quem elabora o Orçamento. A título de sugestão, o Executivo apresenta uma proposta. No Brasil, ocorre o oposto. O Orçamento se transformou em material degradado. O Executivo pode contingenciar dotações orçamentárias a seu bel prazer.

Mais do que isso, pode bloqueá-las, isto é, anular despesas, o que é ainda mais sério, eis que o Orçamento é uma lei que deveria ser cumprida. Como já afirmei neste espaço, o art. 165, § 8.º da Constituição diz que “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Assim, a despesa é fixa e sua execução é impositiva.

Apesar disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no art. 9.º, dispõe que o Executivo pode estabelecer “limitação de empenho e movimentação financeira”, o que significa deixar de realizar a despesa autorizada pelo Congresso. A rigor, esse dispositivo pode ser inquinado de inconstitucional. Ocorre que jornalistas, analistas do setor privado, classe política e servidores das áreas que elaboram ou executam o Orçamento incorporaram a cultura de que o Orçamento é autorizativo ou “de mentirinha”, como afirmou o Estadão, por outras razões, em recente editorial (Mais um Orçamento de mentirinha, 16/3, A5).

Os males do contingenciamento e do cancelamento são inequívocos. Imagine-se uma obra de infraestrutura realizada com recursos do Orçamento da União, por exemplo, uma rodovia ou o seu asfaltamento. A empresa que ganha a concorrência desloca engenheiros, mestre de obras e equipamentos para o local do empreendimento. Aluga residências na região. Começa a obra. Subitamente, sem qualquer aviso, o governo decide contingenciar ou cancelar a verba orçamentária. O custo para o País é incalculável, o prejuízo à boa alocação dos recursos é inequívoco. Creio que muitas das obras interrompidas têm nesse lamentável processo uma de suas causas básicas.

Claro, nosso Orçamento tem outras disfunções. É o caso das escandalosas emendas parlamentares ao Orçamento, que aumentaram gigantescamente nos últimos dez anos e representam, segundo estudos de Marcos Mendes, 24% dos gastos discricionários da União. Tais emendas deveriam ser exceção aplicável a reduzidos casos. É o que ocorre nos países desenvolvidos onde, ainda conforme os estudos de Mendes, representam menos de 1% daqueles gastos, salvo no Estados Unidos, onde alcançam 2,6%.

A rigor, as emendas parlamentares em favor de Estados e municípios não deveriam existir. Em matéria tributária, todos os países têm um pacto político implícito que reserva a cada uma de suas esferas – governo central e unidades subnacionais – parcela na arrecadação, incluindo as transferências intergovernamentais, que no Brasil são os fundos de participação de Estados e municípios e a partilha do ICMS entre Estados e municípios. Cada esfera deveria conter-se em sua fatia de recursos, admitindo-se o endividamento responsável para financiar investimentos.

A crise fiscal que se avizinha pode gerar o senso de urgência para mobilizar a sociedade em favor de reformas para eliminar essas e outras disfunções, permitindo a modernização e a moralização do Orçamento. Isso permitiria abandonar o uso das emendas para negociações políticas. Um efeito colateral seria a redução do potencial de desperdícios e de corrupção

*Maílson da Nóbrega é sócio da Tendências Consultoria e foi ministro da Fazenda

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