Clima traz desafio ao saneamento – O Globo
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- 17/02/2025
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Aumento da taxa de juros encarece financiamento e também pode afetar planos de investimento das empresas para cumprir meta de universalizar o serviço até 2033, como prevê o marco do setor
Mudanças climáticas e aumento do custo do capital, com a alta de juros, dificultam alcançar a meta de universalização do saneamento básico em 2033, na avaliação de especialistas. O marco legal, aprovado em 2020, inaugurou a era das concessões no setor: foram realizados 45 leilões em 19 estados, abrangendo todas as regiões, e mais 43 projetos estão sendo estruturados nos próximos anos, com um investimento total de R$ 277,3 bilhões, segundo dados da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
Especialistas alertam, contudo, que, a nove anos para atingir a meta, sem uma conjuntura econômica favorável e sem incluir nos editais de concessão o desenvolvimento de matrizes de risco para preparar as redes e planos de contingência, o boom experimentado pelo setor pode virar uma frustração para o governo, empresas e famílias, com o aumento da conta de água.
— O enfrentamento das mudanças climáticas se traduz no desenvolvimento de matrizes de risco. Quem faz o quê? Aconteceu o evento, como responder? Não é apenas uma concessionária. Como os eventos afetam a infraestrutura urbana, eles demandam ação coordenada entre o poder público nas diferentes esferas. Essa coordenação é fundamental — disse a economista e diretora do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas, Joisa Dutra.
Estiagem e chuva em 2024
Construir uma rede resiliente aos eventos climáticos pode levar a atrasos nos investimentos para o alcance da meta, mas é uma escolha que precisa ser feita, disse ela. Guilherme Duarte, CEO da Copasa, concessionária de saneamento de Minas Gerais, afirma que é visível os efeitos das mudanças climáticas. Ele lembra que, entre 2024 e início deste ano, houve estiagem de cerca de seis meses em Minas Gerais com falta de chuva e depois uma grande concentração de chuvas acima das médias históricas.
— Isso é reflexo de uma mudança no comportamento climático em relação aos eventos extremos, sejam de secas, sejam de chuvas, e as companhias têm de estar preparadas para isso. Os eventos climáticos impactam tanto os serviços de abastecimento de água quanto de coleta e tratamento de esgoto — diz ele, destacando os investimentos de R$ 17 bilhões entre 2025 e 2029.
Duarte lembra que o excesso de chuva traz problema para gestão do tratamento de esgoto. Ele explica que as redes no Brasil são mistas e têm interconexão com as redes de drenagem pluvial dos municípios e até ligações inadequadas de residências. Com isso, em chuvas concentradas, a rede de esgoto recebe um volume de água muito grande, gerando problemas de rompimento.
— Estamos investindo no famoso ‘caça-esgoto’, que são os lançamentos indevidos de água de chuva nas nossas redes, orientando novos empreendimentos particulares para que façam a devida separação da água de chuva do esgoto doméstico, para que as redes sejam, de fato, aderentes ao volume de esgoto que é recebido e não receba água de chuva indevida.
Rio grande do sul foi alerta
A enchente no Rio Grande do Sul, em maio do ano passado, que destruiu as instalações e deixou a população sem água, foi um alerta para concessionárias, disse o professor da Coppe/UFRJ, Jerson Kelman. Ele afirmou que a inclusão da meta de universalização na lei do saneamento foi positiva, mas os operadores terão gastos adicionais para proteger as instalações.
— Está havendo um grande esforço para alcançar a meta que é ambiciosa. Temos um grande problema que é a crise fiscal pela qual o país está passando. A população está acostumada a pagar pelas instalações existentes, não pela estrutura desejável. O custo para as famílias deve subir.
Para o sócio e economista sênior da Tendências Consultoria, Silvio Campos Neto, as condições financeiras “estão bastante adversas, sem perspectiva de reversão” em 2025 e 2026, o que tornará mais caro e difícil o crédito para as empresas em geral.
— Muitas das empresas de saneamento já se prepararam para esse fluxo de investimento, mas se forem precisar de novos recursos, encontrarão um cenário mais difícil. O custo do dinheiro subiu muito nos últimos três, quatro meses. Aqueles que não estão sentindo vão sentir nos próximos meses.
Do lado do custo, a captação de recursos no mercado ficou mais cara. É um setor altamente intensivo em capital, que precisa fazer investimento de cerca de R$ 90 bilhões por ano até 2033 para conseguir universalizar o serviço. Atualmente, 62,5% dos domicílios brasileiros estão conectados à rede de esgotamento sanitário, de acordo com o Censo 2022.
— Juros mais altos são ruins para qualquer investimento, porto, rodovia e saneamento, que têm prazos muito longos. Aqueles que participaram dos leilões e ainda não captaram os recursos vão ter um custo mais alto, com uma taxa de retorno menor do que esperavam quando participaram do leilão, já que estão encontrando uma taxa de juros diferente. Há impacto no retorno — diz Felipe Thut, do Bradesco BBI.
A Iguá Saneamento, que, em setembro passado, ganhou o leilão para fornecer o serviço em Sergipe e atua na Região Oeste do Rio, fez captações recentes. Houve duas grandes operações para financiar o investimento no Rio, afirma Roberto Barbuti, CEO da Iguá.
— Todas as nossas operações já estão financiadas, exceto Sergipe. Fizemos o pagamento da primeira parcela da outorga. E temos contrato de um empréstimo-ponte. Depois disso, teremos que captar. Obviamente, é uma preocupação.
Sobre o risco para o setor com as mudanças climáticas, Barbuti afirma que seu abastecimento vem de grandes bacias que reduzem o risco de escassez hídrica, e acrescenta que não há atraso nas obras.
— Cuiabá passou por um processo de estiagem, mas há uma disponibilidade grande. Houve problemas no interior de São Paulo e Paraná, mas são operações de menor porte. Há uma preocupação, sim, mas temos um certo nível de conforto nas nossas operações.
A Aegea, que atende 33 milhões de pessoas em mais de 760 cidades de 15 estados, reconhece, por meio de nota, que o “saneamento é um negócio de capital intensivo e, portanto, sofre impactos nos custos financeiros toda vez que as taxas de juros sobem”, mas que tem se preparado para os investimentos.
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