O que está corroendo o orçamento das famílias brasileiras? Entenda – Estadão
- Na Mídia
- 16/02/2025
- Tendências
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Segundo levantamento, de cada R$ 100 em dezembro de 2024, famílias tinham R$ 41,9 disponíveis após gastos com itens essenciais; nas classes D e E, sobra era de apenas R$ 20,6
Nos últimos meses, Karolina Nonato precisou reorganizar o seu orçamento doméstico: o carro deixou de fazer parte do dia a dia devido ao alto preço do combustível, a pesquisa em busca da comida mais barata aumentou e ela e a filha de 17 anos começaram a priorizar atividades gratuitas aos fins de semana.
“Houve muitos ajustes”, conta a fisioterapeuta de 38 anos que vive no Ipiranga, zona sul de São Paulo, e trabalha com processos de qualidade no setor de tecnologia. “Claramente, houve um impacto negativo dos preços. Me atrapalha muito ter de direcionar um valor a mais para fazer a compra do mês, além do benefício que a empresa me dá, que já é bom. Não é que eu compre muita coisa. É realmente o básico.”
A sensação de perda do poder de compra recente não é exclusiva dela. A inflação elevada tem corroído o orçamento das famílias brasileiras e preocupado o governo, cuja aprovação medida pelo Instituto Datafolha caiu para 24%, a pior marca de todos os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No ano passado, a renda disponível diminuiu e inverteu a melhora observada em 2023.
Em dezembro de 2024, de cada R$ 100 recebidos, as famílias tinham disponíveis R$ 41,90 após gastar com itens essenciais, de acordo com um levantamento realizado pela consultoria Tendências. Em 2023, o valor que sobrava era de R$ 42,40.
O tamanho da renda disponível é calculado pela consultoria com base numa cesta básica de consumo, que acompanha a inflação de itens considerados essenciais, como alimentação no domicílio, saúde, cuidados pessoais, transporte e educação.
“Todos os itens essenciais, principalmente os mais pesados, pressionaram muito em 2024″, afirma Isabela Tavares, economista da Tendências.
“A alimentação no domicílio subiu 8,2% no ano passado e, além disso, tivemos os combustíveis subindo bastante. Foi um ano em que a inflação, de forma geral, pressionou o orçamento, e a inflação de itens essenciais ainda mais” (Isabela Tavares, economista da consultoria Tendências)
Nos cálculos da consultoria, a inflação dos itens essenciais encerrou o ano passado em 5,8%, acima dos 4,8% apurados no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “É uma pressão bem forte”, diz Isabela.
Em 2023, o orçamento das famílias ganhou algum fôlego devido ao impulso que recebeu em 2022, quando houve a redução do preço dos combustíveis no governo Jair Bolsonaro, em meio ao acirrado processo eleitoral. Em dezembro daquele ano, a renda disponível das famílias era de 42,4% — ou seja, de cada R$ 100 recebidos, sobravam R$ 42,40.
“Agora, para 2025, acreditamos em uma estabilidade. A inflação de alguns itens essenciais deve desacelerar, como na parte de alimentos, mas ainda temos itens que pressionam bastante”, afirma Isabela. “E mesmo a alimentação segue num patamar ainda acima do IPCA geral. A inflação de itens essenciais deve fechar 2025 nos mesmos 5,8% de 2024. Por isso, a renda disponível deve continuar nesses patamares mais baixos”, acrescenta.
Karolina mora em uma casa que é dos pais e, com o orçamento apertado, só conseguiu voltar a cursar uma faculdade — agora de administração — porque recebe uma ajuda para pagar a mensalidade. “O mais difícil é manter esse fluxo de dinheiro para continuar pagando as mensalidades”, diz.
Ela se beneficia de uma parceria que a faculdade firmou com a fintech Yolo Bank, criada em 2023. Por meio do uso da inteligência artificial, a empresa consegue prever a inadimplência e, dessa forma, oferece um desconto mensal para o estudante que aceita ser cliente do banco — a receita da companhia é obtida com parte da redução da inadimplência das faculdades.
Com foco na população das classes B, C e D, a Yolo Banktem 700 mil estudantes como clientes e acordo com 76 faculdades. “Vemos espaço para chegar a 1,5 milhão de estudantes e a 100 universidades no segundo trimestre de 2026”, afirma Mauro Yolo, CEO e fundador da fintech.
Diferença por classes
De fato, a deterioração do orçamento das famílias brasileiras é ainda mais gritante quando se analisa em detalhe a renda disponível por classe social. Com uma renda domiciliar de R$ 3,4 mil, os brasileiros das classes D e E têm uma folga no orçamento de apenas R$ 20,6 de cada R$ 100 recebidos, segundo a Tendências. No outro extremo, os brasileiros da classe A (renda domiciliar de R$ 25,2 mil) conseguem uma sobra de R$ 51,5.
“A população de baixa renda tem de repensar suas compras, mudar a cesta de consumo, para poder caber dentro do seu orçamento”, afirma Anna Carolina Gouveia, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre) e responsável pela sondagem do consumidor.
As pesquisas do Ibre também têm servido de termômetro para capturar essa piora no orçamento das famílias. O Índice de Confiança do Consumidor recuou pelo segundo mês seguido, para 86,2 pontos, e chegou ao menor nível desde fevereiro de 2023 (85,7 pontos). Em dezembro e janeiro, a queda acumulada foi de oito pontos.
“Esses focos de inflação colocam o consumidor sob alerta”, afirma Anna Carolina. “Além disso, houve o aumento da taxa de juros, o que vai complicar ainda mais o pagamento de dívidas. Tudo isso faz com que os consumidores fiquem mais pessimistas.”
Atualmente, há um pessimismo maior tanto em relação ao cenário atual quanto às expectativas futuras para a economia brasileira.
“Quando o consumidor percebe uma piora ou melhora na sua situação presente, tende a ser uma formação de opinião mais sólida. Nessa virada de ano, houve uma piora do pessimismo e da situação presente (Anna Carolina Gouveia, pesquisadora do Ibre)
Com a inflação em alta, o Comitê de Política Monetária (Copom) promoveu um aumento de um ponto porcentual na taxa básica de juros, para 13,25%no mês passado. Na reunião de março, a expectativa é que o Banco Central promova uma nova alta de mesma magnitude. No relatório Focus, elaborado semanalmente pelo BC, os analistas consultados projetam que a Selic termine o ano em 15%.
“O que tem pegado para o consumidor é a inflação e a taxa de juros muito alta. Os juros não vão ser resolvidos de uma hora para outra. É um problema de mais longo prazo”, afirma Anna Carolina. “Para ter uma retomada da confiança, é necessária uma melhora nos preços e a manutenção de uma situação favorável no mercado de trabalho.”
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