Aplicação retroativa do Estatuto do Idoso aos planos de saúde
- Economia do direito
- 03/11/2022
- Tendências
Está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) a possibilidade de aplicação retroativa do Estatuto do Idoso a contratos de planos de saúde firmados antes de sua promulgação. Entenda quais são os impactos de tal medida neste artigo, escrito pelos analistas da Tendências Mirela Scarabel e Thiago Nascimento.
Sobre o Estatuto do Idoso
Em 1º de outubro é celebrado o Dia do Idoso, data escolhida por ser o dia de criação do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) no Brasil, que entrou em vigência em 2004.
Em seu artigo 15, §3º, ele proíbe que os planos de saúde cobrem valores diferenciados de segurados idosos em função de suas idades. Na prática, isso impede que as concessionárias reajustem preços por faixa etária após seus clientes atingirem 59 anos.
Atualmente, encontra-se em discussão no STF a possibilidade de aplicação retroativa do Estatuto do Idoso a contratos de planos de saúde firmados antes de sua promulgação. Uma eventual decisão favorável a essa proposta significará para os planos de saúde uma proibição de reajustar o valor de contratos por idade em casos envolvendo usuários com mais de 59 anos que contrataram seus serviços antes que o Estatuto do Idoso entrasse em vigor — quando, portanto, tal restrição ainda não existia. Isso sem mencionar a consequente obrigação de devolver os valores já pagos a esse título desde a promulgação da Lei até a eventual decisão favorável que vier a ser proferida pelo STF.
Efeitos indesejáveis do ponto de vista econômico-financeiro
Um estudo realizado pela Tendências Consultoria sobre o tema apontou que, embora a pretendida alteração da aplicabilidade do Estatuto do Idoso para contratos anteriores a 2004 seja motivada por um objetivo sem dúvidas louvável — a salvaguarda dos idosos —, ela tem o potencial de causar uma série de efeitos que, mesmo não sendo intencionais, são altamente indesejáveis do ponto de vista econômico-financeiro.
De acordo com a lei das consequências não intencionais, ações e políticas têm consequências inesperadas, de modo que resultados não antecipados inicialmente podem gerar problemas maiores do que aquele original que se pretende resolver.
São exemplos de efeitos não intencionais da aplicação retroativa do Estatuto do Idoso:
- O desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos afetados pela decisão;
- A elevação do preço dos planos para beneficiários de até 59 anos de idade e para novos beneficiários;
- O aumento da sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS);
- O comprometimento da viabilidade econômica de muitas operadoras do setor (sobretudo aquelas de menor porte);
- Danos à extensa cadeia produtiva que se apoia nessas operadoras;
- Em última instância, impactos sobre o interesse público e a geração de bem-estar social, aspectos fundamentais que devem pautar a tomada de decisão sobre uma política pública.
Repercussões econômicas e sociais indesejáveis e não intencionais
Como os planos de saúde funcionam como seguros, o prêmio (mensalidade paga pelos clientes) deve necessariamente guardar relação com os riscos assumidos e com os parâmetros estabelecidos no momento da contratação. Uma vez que os gastos esperados com a assistência médica de idosos são crescentes conforme os anos passam, a aplicação retroativa do Estatuto do Idoso causaria um desequilíbrio econômico-financeiro evidente nos contratos afetados pela decisão, trazendo diversas repercussões econômicas e sociais indesejáveis e não intencionais.
Em um primeiro momento, as operadoras receberiam, ano a ano, prêmios menores do que os estipulados inicialmente, sem que haja qualquer contrapartida de redução de custos. Isso causaria impactos substanciais para as empresas do setor, estimados na ordem de bilhões de reais.
De modo a tentar compensar a frustração das receitas, as operadoras precisariam elevar os preços para todos os demais beneficiários de até 59 anos — principalmente para os novos beneficiários, uma vez que a regulação existente limita os aumentos dos planos já ativos. Isso tornaria a manutenção ou a contratação de planos de saúde uma opção inviável para muitos segurados, que seriam excluídos do mercado de saúde suplementar.
Essa exclusão e a inviabilização de acesso de novos usuários criariam uma maior demanda por serviços e procedimentos no SUS, que já apresenta inúmeros gargalos. Dados os orçamentos limitados, a infraestrutura e os serviços públicos de saúde disponíveis seriam insuficientes para atender a demanda por atendimentos médicos, internações e outros serviços essenciais à população.
Ademais, os valores mais elevados dos planos de saúde podem gerar o efeito de seleção adversa, quando apenas os usuários com alto risco e maior poder aquisitivo — ou seja, aqueles que utilizarão o sistema com mais frequência — conseguirão arcar com as mensalidades exigidas. Tal efeito, por comprometer a própria lógica de funcionamento de um seguro — segundo a qual usuários com menor risco garantem a sustentabilidade do sistema ao assumirem parte dos riscos de usuários que demandam mais pelos serviços —, poderia levar as operadoras a optarem por não atuar mais neste mercado ou a não ofertar determinados planos e serviços.
Os desequilíbrios econômico-financeiros que seriam gerados pela aplicação retroativa do Estatuto do Idoso ameaçariam a viabilidade econômica de muitas operadoras do setor. Tal efeito seria mais sentido, sobretudo, por seguradoras de menor porte, uma vez que elas se encontram em situação financeira mais fragilizada que as operadoras de maior porte, sendo mais suscetíveis a pressões relacionadas a aumentos de custos e restrições de repasses.
A potencial falência de algumas operadoras de planos de saúde pode levar a uma concentração do mercado nas de maior porte, com consequente redução da concorrência, implicando em perdas para os consumidores.
Em segundo lugar, o encolhimento do mercado de planos de saúde, seja por falência de operadoras ou pela possível queda na qualidade e na oferta dos serviços prestados por toda a cadeia de valor envolvida, levaria a demissões e ao fechamento de unidades de saúde, com menos geração de empregos, renda e arrecadação tributária do setor.
Impactos diretos e indiretos em outras atividades
A parte disso, planos de saúde sustentam uma extensa cadeia produtiva, a qual abrange diversos serviços, prestadores e fornecedores, que demandam insumos, fornecem bens e serviços, geram empregos, arrecadam impostos e se espalham ao longo de toda a economia, chegando a várias outras atividades produtivas. Dessa forma, o encadeamento produtivo estabelecido a partir do setor de saúde atinge direta ou indiretamente outras atividades que não estariam originalmente envolvidas com essa atividade. Comprometer a sustentabilidade do funcionamento da cadeia de valor do setor é colocar em risco toda a atividade econômica induzida pelos serviços de saúde complementar, a qual pode ser traduzida em prejuízos à economia, comprometendo empregos, renda e a arrecadação de impostos.
Mais consequências negativas do que benefícios gerados
Por fim, a eventual aprovação da aplicação retroativa do Estatuto do Idoso aos contratos anteriores à sua promulgação traz consequências negativas que se mostram muito custosas frente aos benefícios gerados. Os únicos que seriam beneficiados com tal decisão seriam aqueles que contrataram um plano de saúde antes de 2004 e para os quais a regra em questão seria aplicada. Dentro deste grupo, os usuários que se encontrassem mais próximos da faixa “acima de 59 anos” seriam relativamente mais favorecidos que os demais.
O estudo concluiu, portanto, que se trata de um resultado não desejável do ponto de vista econômico e social, uma vez que representaria um benefício não justificado para um pequeno grupo em detrimento do restante dos beneficiários e da população em geral, configurando um tratamento não isonômico para um seleto grupo de indivíduos. Além disso, afetaria a saúde financeira das operadoras e o bem-estar do restante dos beneficiários e da população em geral.
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Artigo escrito por Mirela Scarabel e Thiago Nascimento, economistas da Tendências Consultoria, para o site Consultor Jurídico (Conjur) em 3 de novembro de 2022.