Antitruste em evolução: como o novo guia dos EUA redefine o jogo – Jota
- Na Mídia
- 15/01/2024
- Tendências
Brasil se beneficia desse debate global
Por Adriana Hernandez Perez e Fabiana Tito*
Um lançamento muito aguardado
Em artigo acadêmico de 2017, Lina Khan, que veio a se tornar a diretora do órgão americano Federal Trade Commission (FTC) em 2021, defendeu que o arcabouço antitruste dominante “não estava equipado para capturar a arquitetura de poder de mercado da economia moderna”.
Desde então, surgiu um intenso debate sobre a modernização do controle antitruste nos EUA, o que culminou no lançamento de um novo guia pelo FTC e pelo Departamento de Justiça em 18 de dezembro de 2023, que atualiza as diretrizes de 2010 e 2020. O processo atraiu mais de 30 mil comentários durante consulta pública.
Guias de análise antitruste visam fornecer um roteiro de avaliação de fusões empresariais, baseando-se em teorias estabelecidas. Eles melhoram a previsibilidade tanto dos processos de análise quanto das decisões das autoridades em casos comuns.
O lançamento é significativo devido à posição econômica e inovadora do país, especialmente em tecnologia, influenciando a condução de empresas e governos globalmente. As novas diretrizes devem impactar as grandes corporações e moldar a dinâmica global de inovação e concorrência.
Como o guia está estruturado?
O guia antitruste tem quatro seções: a primeira introduz 11 diretrizes gerais, reduzidas das 13 originais. A segunda detalha a aplicação prática do guia, descrevendo os procedimentos para cada diretriz. A terceira foca em evidências e argumentos que as partes podem usar para responder a preocupações iniciais da autoridade antitruste. Já a quarta trata das ferramentas analíticas e econômicas e dos tipos de evidência para investigar casos, avaliar riscos à concorrência e definir mercados relevantes, fornecendo a metodologia econômica essencial para a aplicação das diretrizes.
Diretrizes estruturais e específicas
Em comparação à proposta inicial, as diretrizes se apoiam em um tom mais firme, indicando possíveis consequências legais para casos em que fusões resultarem em uma deterioração significativa da concorrência.
Das 11 diretrizes, as quatro primeiras focam na competição direta entre empresas (fusões horizontais), enquanto as duas seguintes tratam de fusões entre empresas em mercados relacionados (fusões não horizontais). Juntas, essas seis diretrizes orientam as agências a identificarem se uma fusão gera preocupações concorrenciais.
Já as diretrizes 7 a 11 explicam como aplicar as seis primeiras em situações específicas, como plataformas digitais, mercados em consolidação, fusões em série, negociações envolvendo compradores rivais e aquisições parciais.
Enfoque na análise de riscos anticoncorrenciais
Com o objetivo de priorizar a análise de riscos anticoncorrenciais, o novo guia deixou de fazer uma distinção estrita entre efeitos unilaterais e coordenados, tratando-os de forma mais genérica e sobrepondo a análise de evidências quantitativas e qualitativas.
Reitera-se que a tomada de decisão da autoridade antitruste ocorre em um ambiente de incerteza, dado que os insumos à análise são informações e teorias de dano disponíveis quando o caso é avaliado.
Retorno dos limites de presunção de risco concorrencial
O guia adotou uma visão mais conservadora sobre os níveis preocupantes do índice de concentração, reintroduzindo um limite de 30% para participação de mercado e Índice de concentração Hirshman-Herfindal (HHI) acima de 1.800 (antes, ele era limitado a um valor absoluto de 1.500 e uma variação superior a 100).
Essa abordagem facilitaria a avaliação dos riscos anticoncorrenciais, permitindo refutar a presunção de ilegalidade com evidências proporcionais ao risco concorrencial identificado.
Análise de fusões não horizontais se beneficia de avanços na teoria
As diretrizes 5 e 6 tratam de fusões não horizontais. A primeira traz a análise tradicional, examinando riscos como fechamento de mercado, aumento de custos para rivais e acesso a informações sensíveis dos competidores, tendo em vista fatores como habilidades e incentivos para esses riscos. Já a segunda mergulha nas novidades da literatura sobre teoria dos jogos e comportamento estratégico ao abordar como fusões podem criar ou manter a dominância de mercado através da elevação de barreiras de entrada ou eliminação de concorrentes emergentes, bem como expandir a dominância através da oferta de pacotes de produtos/serviços. Discute ainda o risco de fusões ampliarem o domínio de uma empresa para um mercado relacionado.
A diretriz 6 suscitou debates, considerando que limitar aquisições de empresas inovadoras poderia desincentivar a inovação. Argumentou-se que restringir a possibilidade de empreendedores venderem suas inovações desaceleraria o progresso inovador, sendo que a autoridade antitruste poderia optar por um monitoramento pós-fusão em vez de controles preventivos rigorosos. Todavia, a autoridade parece preferir minimizar o Erro Tipo II, que consiste em não reconhecer e combater operações prejudiciais à concorrência.
Destaque para diretrizes inovadoras
A diretriz 9, sobre fusões de plataformas digitais, é de interesse global e resume o conhecimento teórico acumulado sobre esses mercados complexos ao definir o que seriam plataformas, seus aspectos chave e como fusões nessa área podem prejudicar a concorrência.
A diretriz 10 inova ao abordar fusões que criam poder de compra no mercado de trabalho, um aspecto antes negligenciado. Ao reconhecer a competição por trabalhadores e fornecedores, ela examina o possível impacto negativo sobre salários, condições de trabalho e avanço profissional.
A diretriz 11 identifica três mecanismos em que participações minoritárias ou parciais podem enfraquecer a concorrência: (i) o comprador influenciar a estratégia competitiva da empresa-alvo (seja por meio de governança, direito a voto, interesse financeiro etc.); (ii) a redução do incentivo para competir intensamente; e (iii) o acesso a informações sensíveis de uma empresa-alvo, mesmo sem influenciar diretamente suas decisões.
Definição mais abrangente de mercado relevante
Na seção final do guia, o conceito do “teste do monopolista hipotético (TMH)” foi atualizado para incluir explicitamente outros parâmetros além do preço na definição do mercado relevante, tais como alterações em qualidade, serviço, investimento em capacidade produtiva, diversidade de produtos ou de suas características e inovação. Na análise de uma operação de fusão entre compradores do mesmo insumo, o TMH investigaria a ocorrência de queda no preço ou piora nos termos de troca dos fornecedores, redução no salário ou prejuízo às condições de trabalho dos trabalhadores. Além disso, o guia explora outros aspectos para definir um mercado antitruste relevante.
Grandes expectativas
Existe uma grande expectativa sobre como as cortes americanas irão aplicar o novo guia, que incorpora avanços teóricos recentes e busca responder às críticas que as autoridades antitrustes têm recebido sobre a sua efetividade em práticas anticoncorrenciais, que coíbem o ritmo de inovação na economia.
Paralelamente, o Brasil se beneficia desse debate global enquanto são aguardados os lançamentos dos resultados da consulta do Guia V+ e da minuta do Guia de Condutas Unilaterais para consulta pública.
*ADRIANA HERNANDEZ PEREZ – Consultora na Tendências Consultoria, professora de Economia na FGV/EESP e doutora em Economia pela Toulouse School of Economics (França) / FABIANA TITO – Sócia da Tendências Consultoria e doutora em Economia pela FEA/USP
Reprodução. Confira o original clicando aqui!